cultura tuaregue...
Tuareg culture...
culture touarègue...
Tuareg-Kultur...


28/05/2009

Entrevista a Issa Dicko

Entrevista realizada por Nicolas Roux a Issa Dicko, promotor cultural da Associação Taghreft Tinariwen, difundida a 25 de Março de 2009 (Emissão Amandla CKUT 90.3 FM - Montréal).

Parte 1/4


Parte 2/4


Parte 3/4


Parte 4/4


Entrevista: © Nicolas Roux

Música: © Tinariwen, © Japonais, © Toumast, © Desert Rebel, © Etran Finatawa, e © Tamikrest

Fotografia: © Ineke Hemmings, © Tania Natscheff e © Brigitte Schwabe-Hagedorn


(Vídeos disponíveis no Youtube Loewine Channel)

27/05/2009

Estratégias nos movimentos migratórios dos Tuaregues

O estudo das migrações no seio da sociedade nómada tuaregue, levanta-nos desde logo um problema de difícil análise e, do qual emana, segundo nos parece, a questão central deste nosso trabalho. O ser-se estrangeiro no seu próprio território.

Convirá nesta breve introdução e, antes de passarmos às questões centrais do presente estudo, tecermos algumas considerações tanto sobre o nomadismo como sobre as migrações de uma forma geral.

É desde logo fundamental termos consciência da prática do nomadismo enquanto tendência natural do homem ao longo de vários séculos (Jackson, 1991: 3). Ao homem deverá estar sempre associada a ideia de movimento. Seja por força de catástrofes, guerras ou convulsões, seja pela necessidade de aumentar o seu rendimento económico, as migrações sempre fizeram parte da vida do homem. Em suma, a busca incessante de melhores condições de vida, fazem com que as sociedades humanas não sejam estáticas.

A "sociedade de fixação", segundo Jackson, não existe nem nunca terá existido, tratando-se apenas de um conceito errado, que simplesmente teve como consequência infeliz a adopção da representação do migrante como um estranho ou uma pessoa marginal (Jackson, 1991:4).

Assim, o estudo das migrações parece tomar hoje em dia um novo rumo, fruto em grande parte do impacto social, económico e cultural que elas mesmas representam, demonstrando pois a importância da mobilidade humana.


1. A sociedade nómada tuaregue

De acordo com os dados disponíveis, a população tuaregue que actualmente povoa o deserto do Sara, parece ter sido expulsa dos seus territórios de origem, no norte de África, num movimento para sul, por altura das invasões árabes. Empurrados para a região do Sara, espalham-se por todo o deserto, desempenhando durante vários anos um papel importante no comércio entre o norte de África e a África subsariana (Durou, 1996; Brett, 1997; Nicolaisen, 1997).

No entanto, os tuaregues são essencialmente pastores nómadas, apesar de esporadicamente também se dedicarem à agricultura, sobretudo junto a oásis (Nicolaisen, 1997). A sua vida é regulada por um ciclo, numa busca incessante de água e pastos para os seus rebanhos. As constantes migrações que realizam, reflectem apenas a necessidade absoluta de sobrevivência, dos seus rebanhos e, consequentemente a deles próprios.

Contudo, a partir dos finais do século XIX, um enorme número de factores, alheios aos próprios tuaregues, iniciam a destruição de todo um equilíbrio em que a sua sociedade nómada parecia assentar. Modificações ao nível da organização social, política e económica, provocadas pela colonização francesa de toda a região do Sara, produziram consequências dramáticas na situação actual deste povo (Porch, 1986; Durou, 1996).

As dificuldades do terreno, não impediram a colonização francesa de toda a região, abalando toda a estrutura da sociedade tuaregue. Perante esse conjunto de acontecimentos, provocados pela colonização, os chefes das grandes confederações tuaregues, do Aïr, do Hoggar e do Ajjer, tentam negociar com a França uma solução política que permitiria a obtenção da independência de uma parte dessa vasta região do Sara. A procura de tal solução deu-se no entanto em vão. Aliás, o rumo dos acontecimentos foi bem diferente.

Com a independência obtida pelos países que formavam as colónias francesas na região, a situação do povo tuaregue agrava-se ainda mais. As fronteiras traçadas pelos poderes europeus repartem este povo por vários Estados, para além de constituirem barreiras artificiais nos seus territórios de nomadismo.

De igual modo, essa absurda marcação de fronteiras torna-se numa das causas de instabilidade em algumas zonas do norte de África, veja-se o caso entre Marrocos e a Argélia, provocando, em face desses conflitos uma forte militarização das zonas de fronteira. Para o povo tuaregue, essa presença militar nas zonas fronteiriças coloca graves dificuldades tanto à sua transumância pastoril como às práticas comerciais por eles levadas a cabo.

A par destes factores surgem as catátrofes naturais. As grandes secas, em particular as dos anos 70 e 80, provocaram um golpe brutal no nomadismo.

Actualmente, a grande maioria das tribos encontra-se dividida. Os locais habituais de nomadismo encontram-se limitados ou são desviados pelos governos locais, facilitando dessa forma o seu controle e evitando a reorganização das tribos. A complexa organização política tuaregue representa ainda uma potencial ameaça para os governos locais de toda esta região.

Perante todas estas circunstâncias, a emigração forçada para as cidades é única solução encontrada para o tuaregue, resultando assim numa sedentarização contra a sua própria vontade. Assim, a condição natural do homem tuaregue, o nomadismo, vê-se ameaçada. A estaticidade que a sedentarização representa (Jackson, 1991: 1-4), torna-se numa verdadeira humilhação para todo o tuaregue.


2. Movimentos migratórios do povo tuaregue

Apesar de minoritárias, existem ainda algumas sociedades que baseiam a sua vida em deslocações permanentes ou regulares, são as populações nómadas ou seminómadas (Dollot, 1976: 31-33; Thumerelle, 1986: 16-17), sendo que um dos exemplos mais representativos é precisamente a sociedade tuaregue.

Um dos grandes especialistas em questões nómadas, Moudour Zakara, ex-ministro dos assuntos Sarianos do Níger, define um nómada como sendo "um homem cuja actividade e modo de vida são essencialmente caracterizados por migrações, ainda que isso não signifique que ele esteja em constante deslocação ao longo de um ano inteiro" (cit. Vaes, 1992: 508). No Níger, os que se podem realmente qualificar de nómadas, uma ínfima minoria, são-no por tradição e necessidade, uma vez que conhecem desde o seu nascimento apenas aquele modo de vida, associado à plena liberdade e ao amor pelos grandes espaços, tornando-se bem difícil alterar o seu comportamento, mesmo de uma forma progressiva. As hipóteses para que tal alteração se venha a verificar, encontram-se dependentes da própria evolução da sociedade em questão, que A. Bourgeot designa por "movimento para a sedentarização" (cit. Vaes, 1992: 401-404).

Tal movimento, segundo aquele autor, poderá tomar duas vias. A primeira, denominada sedentarização dinâmica, é o resultado de um dinamismo interno que conduz uma sociedade nómada à sedentarização; a segunda, a coerciva, conduz a sociedade à sedentarização por factores externos de diversa ordem, económica, política, jurídica, entre outras (cit. Vaes, 1992: 401-404).

Zakara distingue quatro "patamares" na evolução da sociedade nómada até à sedentarização, baseando a sua análise numa profunda interligação daquilo que considera "constrangimentos geográficos, económicos e políticos do meio" (cit. Vaes, 1992: 510).

Passando a uma rápida descrição desses "patamares", os nómadas puros, por definição, não praticam nenhuma forma de agricultura. O seu habitat é essencialmente móvel e as suas deslocações envolvem todo o grupo de acordo com um ciclo regular, entregando-se exclusivamente à criação de gado.

Num segundo "patamar" de evolução, surgem os nómadas agricultores. Ainda que pratiquem a cultura do milho na época das chuvas, a sua actividade principal é igualmente a criação de gado. Tal como os nómadas puros, o habitat é móvel e as numerosas deslocações são realizadas por todo o grupo. Esta categoria esforça-se por conciliar a criação de gado e a agricultura, sendo no entanto esta última apenas a título complementar.

A direcção e a importância das deslocações do nómada agricultor, são condicionadas essencialmente por dois locais. Os pontos de água onde passará a maior parte da estação seca e o local onde semeará o milho no início da estação das chuvas, ao qual regressará para o recolher durante o mês de Outubro.

Os semi-nómadas, num terceiro "patamar", distinguem-se dos anteriores, pelo facto das suas deslocações raramente serem superiores a 30 quilómetros e, de se realizarem geralmente em redor de um ponto de água permanente, na proximidade do qual se encontram igualmente as culturas. As deslocações são realizadas apenas por uma parte do grupo, normalmente os mais jovens, que se deslocam com os animais.

Surge finalmente o último "patamar" de evolução, os nómadas sedentarizados, fixando-se num determinado ponto seja por plena vontade, seja por força das circunstâncias. A idade, a doença, a pobreza, a seca, as epidemias que atacam os animais, constituem factores que podem transformar, súbita ou lentamente, um itinerante num sedentário. (Vaes, 1992: 511).

O resultado da evolução em "patamares" não implica que uma hierarquia substitua a anterior. Bem pelo contrário, todas elas coexistem nos dias de hoje, sendo contudo o "patamar" dos nómadas sedentarizados, a hierarquia mais representativa da actualidade.

Em cada uma das hierarquias de evolução referidas, o indivíduo é obrigado a adaptar-se a um novo meio ambiente, a um novo modo de vida, a novos costumes locais, por vezes a um novo dialecto local. Zakara refere a este propósito, que "a partir do momento em que o nómada se sedentarize, a operação termina com uma verdadeira mutação do indivíduo" (cit. Vaes, 1992: 511).

Pensamos contudo a este propósito, não se tratar de uma "verdadeira mutação do indivíduo", mas tão somente a aquisição de um novo estatuto, o de emigrante. Aliás, a própria designação a que Zakara se refere, "nómada sedentarizado", implicará um continuar a assumir uma identidade cultural nómada.

Brahim Litny, tuaregue do Mali, a viver actualmente em Paris, escreve: "O deserto é a minha identidade, o meu lar. Quando regresso ao deserto, sinto que reencontro o meu lar. Volto a encontrar a minha própria dimensão, o sentido das coisas, sinto-me no meu elemento natural. Em contrapartida, quando me encontro em Paris, sou constantemente obrigado a adaptar as minhas necessidades, sou obrigado a conformar-me com comportamentos, valores e discursos pouco habituais para mim" (Litny, 1994: 147).

Este é o verdadeiro sentimento do povo tuaregue. Paris poderia ser substituída por Bamako ou qualquer outra cidade do Sael, mas é um facto que nem o Mali, nem o Níger, nem a Argélia, nem qualquer outro país que partilha o deserto do Sara, é a pátria de um tuaregue. A sua pátria é o deserto, da mesma forma que a sua língua, própria, é o tamacheque.

Torna-se pois claro concluir, perante um conceito espacial tão definido, uma identidade cultural tão característica (Nicolaisen, 1997: vol.1, 394) e, uma organização político-social tão complexa (Nicolaisen, 1997: vol.2, 501), que caracterizam o povo tuaregue, estarmos perante uma pátria tuaregue imaginária, que existe apenas no espírito dos tuaregues, mas na qual acreditam fortemente, e através da qual são estabelecidos todos os laços de união.

Todos os factos que temos vindo a referir representam a consciência de identidade do povo tuaregue. Apesar de dispersos, a maior parte sedentarizados, pelos diversos países da região do Sara, tal não implica que se tenha operado uma mutação do indivíduo. Para que tal tivesse acontecido, essa consciência colectiva teria de ser a primeira a desaparecer. Segundo Bruneau, "os membros de uma diáspora podem estar perfeitamente integrados e aculturados nos países de acolhimento, mas não podem estar assimilados, senão teriam perdido toda a sua consciência identitária, e deixariam de constituir uma diáspora" (Bruneau, 1994: 8).

No presente caso tuaregue tal não se verificou. A consciência identitária continua a existir. Os valores e a cultura tuaregue continuam a ser transmitidos de geração em geração, parecendo estarmos longe da quebra dessa cadeia contínua de identidade.

No entanto, será pertinente referirmo-nos ao alcance esigmatizante da expressão "nómada sedentarizado", facto igualmente presente emtantos outros casos de contexto migratório (V. Leandro, 1998: 148).

Assim, convirá desde já salientar a existência de dois movimentos migratórios que caracterizam a população tuaregue. Por um lado, os próprios movimentos em contexto nómada, como prática e forma de vida, por outro, os movimentos migratórios que conduzem à sedentarização.

Em ambos os casos, tais movimentos implicam uma forte estratégia de adaptação. Por um lado de uma adaptação constante a essa dura forma de vida que é o nomadismo, por outro, uma adaptação a uma nova e radicalmente oposta forma de vida, a sedentarização.

Sem esta noção de estratégia tão bem definida, qualquer um dos movimentos migratórios seria impensável para os tuaregues.


2. Dupla estratégia. Adaptação e resistência tuaregue

Do exposto anteriormente, essa adaptação constante a que o nómada se sujeita, fará parte do conjunto de estratégias em que toda a sociedade tuaregue parece assentar.
A este propósito, convirá desde logo definir a noção de estratégia. Segundo E. Leandro, estratégia "consiste na condução e realização de acções lógicas com o objectivo de mobilizar diversos meios para atingir objectivos globais" (Leandro, s.d.).

Na actualidade, por força dos condicionalismos, os próprios tuaregues tendem a entrar nessa lógica da adaptação, sedentarizando-se. A nosso ver, essa mudança de estatuto, de nómada a emigrante, à qual fizémos alusão no capítulo precedente, poderá fazer parte de uma estratégia dos movimentos migratórios do próprio povo tuaregue.

Contudo, essa estratégia de adaptação apenas ganha lógica se encarada a par de uma outra, a estratégia de resistência. Resistência de uma identidade nómada face a uma identidade cultural árabe / islâmica.

Resulta óbvio que nesse movimento para a sedentarização, nos encontramos definitivamente perante a situação de contacto de duas culturas distintas entre si, de um lado a berbere/tuaregue do outro a árabe/islâmica.

Nesse sentido, a noção de aculturação, como "forma de mudança cultural suscitada pelo contacto com outras culturas" (Neto, 1997: 43) é tão pertinente quanto complexa no presente caso em análise. Para tal, bastará recordarmos que seriam os berberes / tuaregues os habitantes originais do norte de África e, que após as invasões árabes do século VII, "uma nova mentalidade e expressão" (Brett, 1997: 81) é imposta. Digamos pois, que é com o decorrer dos séculos, dos finais do século VII até ao século IX em particular, que os novos habitantes dessa região provocam um desencadear de contactos "contínuos e directos" (Neto, 1997: 43) originando uma perda de legitimidade e supremacia cultural do povo Berbere, através de todo o processo que foi (e ainda o é na actualidade) a islamização.

Apesar de terem aceite o Islão como nova religião, os tuaregues mantiveram contudo alguns aspectos da cultura pré-islâmica e tradições rituais. A islamização parece nunca ter sido capaz de apagar em definitivo a cultura berbere, em parte devido aos refúgios geográfico-espaciais escolhidos, o deserto do Sara e as montanhas mais inacessíveis do norte de África. Desta forma foi possível preservar uma língua própria, diversos costumes e formas de organização social.

Face a todos os problemas levantados ao longo do capítulo precedente, coloca-se-nos a questão de sabermos até que ponto, o problema da aculturação não será um fenómeno em contínuo desenvolvimento em todo o norte de África, conduzindo a uma lenta e gradual perda de identidade do povo tuaregue.

Dos relatos existentes, não nos restam dúvidas quanto à importância assumida por essa estratégia de resistência delineada no processo de sedentarização.

A necessidade de ligação permanente com a sociedade de origem, com esse modo de vida tradicional, encontra-se igualmente patente na transmissão de valores, bem como de um modo geral em todo o processo de educação dos próprios filhos. A resistência ao processo de escolarização das crianças tuaregues nas cidades, é igualmente uma das provas dessa protecção à sua identidade cultural. De um modo geral, os tuaregues não mandam as suas crianças para as escolas das cidades, caso contrário, segundo eles próprios, ficariam irreconhecíveis e já não se identificariam mais com o seu próprio povo.

Mas até quando funcionará esta dupla estratégia de adaptação, por um lado, e de resistência identitária, por outro? Até que ponto, no futuro, este processo não entrará numa "lógica de (re)elaboração" (Leandro, 1998:150)?

Todas estas questões serão deixadas propositadamente em aberto. Poderíamos deixar em aberto algumas respostas hipotéticas, no entanto, a complexidade de todo o contexto social em que se insere este povo, para além das questões climático-ambientais, não nos levará a arriscar nenhum tipo de resposta.


Conclusão

A complexidade na análise dos fenómenos migratórios, conduz-nos inevitavelmente a um vasto conjunto de questões às quais não nos poderemos abstrair, para uma análise detalhada do deu conjunto. No entanto, falta-nos o tempo e, essencialmente um trabalho sistematizado de terreno, que tal análise em nosso entender mereceria.

De acordo com M. E. Leandro, "os projectos migratórios, sendo individuais, integram simultaneamente, uma solidariedade familiar e as próprias dinâmicas do contexto social" (Leandro, 1998: 129), advindo pois toda a complexidade na investigação das migrações.

Neste breve estudo, que não passará porventura de uma introdução a uma investigação que se pretenderia mais aturada, resta-nos concluir que, a sociedade nómada tuaregue reage às políticas assimilacionistas dos governos locais, através de uma dupla estratégia, a da adaptação e a da resistência.

É curioso verificarmos que a sedentarização deste povo não possa ser encarada através da sua dedicação à criação de gado. Manter os nómadas nas suas actividades pastorais e/ou no comércio caravaneiro, seria reconhecer o seu prestígio nestes domínios, algo que está bem longe das políticas praticadas. Os trabalhos nas minas e na agricultura, são os domínios destinados ao povo tuaregue, numa tentativa de assimilação, de esvaziamento identitário e respectiva perda de coesão social.

É ainda interessante constatarmos que, nos países ou regiões em que os nómadas não representam nenhum perigo na tomada do poder político ou económico, reina a marginalização. Veja-se o caso dos ciganos por toda a Europa.

Enquanto toda a sociedade tuaregue não se encontrar completamente desmantelada, a sua organização política, social e económica, representará sempre uma potencial ameaça para os países que partilham o deserto do Sara.

Resta-nos terminar, tal como havíamos iniciado, com o facto de que para além da complexidade de todo e qualquer fenómeno migratório, estarmos ainda perante um caso tão banalizado em todo o continente africano, o facto de se ser estrangeiro no seu próprio território.


Bibliografia

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DUROU, Jean-Marc (1994), La passion du désert, Paris, Éditions de La Martinière.

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LEANDRO, M. Engrácia (1998), "Lógicas interactivas, projectos e estratégias familiares migratórias. Ritmos escolares e profissionais e denominação dos jovens de origem portuguesa em França" in Trajectórias sociais e culturais de jovens portugueses no espaço europeu, questões multiculturais e de integração, Aveiro, Universidade de Aveiro, UICCPSF, pp. 123-155.

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VAES, Bénédicte, Gérard del MARMOL, e Albert d'OTREPPE (1992), Guide du Sahara, Hachette.


(texto escrito em Jul. 1999)

Práticas educativas no deserto do Sara



1. Introdução

Enquanto assitimos ao crescente volume de movimentos migratórios um pouco por todo o mundo, originando relações interculturais a vários níveis e de diversa ordem, vemos igualmente crescer de forma assustadora, diversos problemas resultantes desses contactos entre culturas.

De uma forma geral, tornou-se frequente ao longo dos anos na nossa sociedade, a adopção quase exclusiva de modelos e práticas educativas ocidentais que, se algum contributo (negativo) tiveram, limitaram-se a favorecer o acentuar do etnocentrismo ocidental, na maior parte dos casos por via de um modelo educativo monocultural.

Defendemos há já algum tempo, que a sociedade actual assenta as suas relações numa dimensão intercultural. A chamada cultura norte-americana ou a cultura europeia, não mais têm razão de assim se denominarem, segundo uma perspectiva estanque. De grupo para grupo, dentro de uma mesma sociedade, existem profundas diferenças culturais, sendo que poderíamos mesmo defender, o grupo familiar, como sendo a mais pequena célula cultural. Tal facto parece ser tanto mais evidente, quando nos encontramos perante sociedades ocidentais e de cariz urbano.

A investigação nas relações interculturais, numa abordagem pluridisciplinar, defendida por Conceição Ramos (1996: 256) poderia ser a via pela qual muitos dos problemas que advêm das diversidades culturais, encontrarem uma solução. Na base de todo o sistema, a adopção de modelos educativos interculturais.

O nosso interesse pelo norte de África e, em particular pela cultura tuaregue, conduziu-nos a uma breve análise das práticas educativas desta sociedade, situadas no "seu contexto cultural e ecológico" (N. Ramos, 1990:321).

Consequência das políticas de colonização e posterior repartição dos seus territórios, o povo tuaregue, apesar de todo um conjunto de referências comuns, em particular a língua e o modo de vida nómada, das quais resulta uma forte identidade étnica, caracterizam-se actualmente por uma enorme variedade sócio-cultural, acentuada em parte por essa repartição territorial imposta pelos diversos países que partilham o território do Sara.

Assim, ao longo do presente trabalho, debruçar-nos-emos sobre os Kel Ahaggar, na região do Hoggar, em parte devido à forte representatividade desta confederação tuaregue (Nicolaisen, 1997; Bernezat, 1991; Chaker, 1984).

Nos acampamentos tuaregues, a vivacidade e a precocidade das crianças é sempre algo que causa espanto. Muito pequenos, encontramo-los em cima de camelos, ocupando-se das cabras, não ignorando nada acerca do deserto e da vida nómada.

No entanto, visivelmente, as crianças tuaregues vivem e desenvolvem-se num clima de ternura e de carinhos atentos.


Fig. 1 - Criança tuaregue com o seu pai


2. A educação da criança… de ritual em ritual

Marco importante na vida de toda a sociedade é o nascimento de uma criança, celebrado de diversas formas, de acordo com determinados rituais que variam de cultura para cultura. No deserto do Sara, na região do Hoggar (Argélia), os tuaregues não são excepção à regra. Os "Textos Tuaregues em Prosa" (Chaker, 1984), reunidos por Calassanti-Motylinski entre 1906 e 1907 e, posteriormente, até 1916 por Charles de Foucauld, mostram alguns pequenos exemplos desses rituais e práticas educativas das crianças tuaregues.

Iniciando o nosso percurso pelo acto do nascimento, referiremos que o mesmo é assistido pelas mulheres tuaregues mais velhas, cujo relato passamos a transcrever:


"[Elles] lui coupent le cordon, le lavent avec de l'eau chaude, lui tirent les narines et l'enveloppent dans un drap de mousseline. Elles le donnent à sa mère pour qu'elle l'allaite lorsque la pâmoison est passée. Si elle ne reprend pas [rapidement] ses esprits, les vieilles font boire à l'enfant une infusion de dattes avec une pipette faite en bois de tamaris. Les femmes touarègues la fabriquent elles-mêmes. Cette pipette pour les enfants a un nom particulier: on l'appelle arelala («biberon»). Une vieille femme prend le bébé sur ses genoux et lui chante «Dû-dellâ, dû-dellâ, dû-dellâ» en le berçant."
(Chaker, 1984:86)


Facilmente constataremos os inúmeros pontos em comum com as práticas utilizadas na nossa sociedade. É igualmente curioso verificarmos que, em alternativa ao leite materno, caso a mãe não se encontre em condições de amamentar, se recorre ao leite de cabra, razão pela qual permanece sempre um destes animais ao lado da tenda que alberga o recém nascido e a respectiva mãe.

Do relato transcrito, notamos a ausência do pai em todo o processo do nascimento da criança. Na realidade, o acto do nascimento em si mesmo é partilhado e assistido apenas pelas mulheres. Ao pai é reservado o papel na preparação dos festejos aquando da atribuição do nome à criança.

Quando atingem os setes dias de idade, é-lhes atribuido um nome, ocasião de cerimónias de carácter festivo, sendo igualmente este, o dia em que lhes é cortado o cabelo. A atribuição de um nome no decorrer do ritual, confere-lhe uma identidade, sendo então a criança reconhecida como um membro do grupo familiar (Erny, 1989:32).

O próprio corte do cabelo assume um significado, evoluindo o corte e o penteado com o decorrer da idade e a respectiva passagem pelas diversas fases propiciatórias. Regra geral, após o nascimento, o cabelo é rapado às crianças sem distinção de sexo. De igual modo, até cerca dos 2 anos de idade, tanto rapazes como raparigas usarão um tufo de cabelo na parte superior do crâneo.

Cerca dos dois meses de idade, executam-se no corpo da criança escarificações rituais, nas têmperas, nas costas e no peito. Crêem desta forma fortificar a criança e, que por via de tal ritual, ela começará a andar mais cedo (Fig. 2) (Chaker, 1984:88).


Fig. 2 - Escarificações rituais praticadas num bebé de dois meses

É referido por Foucauld (Chaker, 1984:86) que, as primeiras palavras proferidas pela criança são, papá, mamã, água, tâmara, camelo, burro, cabra entre outras. Tal conjunto de palavras revela uma profunda relação ao meio envolvente, nomeadamente ao nível das necessidades básicas no deserto, não só da criança como igualmente do adulto.

Esta profunda relação entre meio ambiente e cultura, torna-se igualmente evidente ao nível dos brinquedos e das próprias brincadeiras das crianças tuaregues.

Reconhecemos a importância dos brinquedos na educação de uma criança. O brinquedo não só satisfaz o sentido de posse da criança, como também desenvolve a familiarização com os objectos manejados pelos adultos, incrementando assim a sociabilização e o contacto com a realidade. Desenvolvendo as suas capacidades e aptidões, não só de ordem física como intelectual, os brinquedos ensinam, treinam e influenciam a criança.

Ao analisarmos o caso concreto das crianças tuaregues, deparamo-nos com isso mesmo. Os brinquedos assumem praticamente o papel de um ritual de iniciação à vivência no deserto. É o primeiro contacto com alguns dos objectos e práticas que o acompanharão durante toda a sua vida.

Representando os camelos um papel primordial na vida dos tuaregues (Bernus, 1993; Bernezat, 1991; Nicolaisen, 1997; Vaes, 1992), ao contrário dos outros animais domésticos, aqueles chegam a assumir uma função social (Nicolaisen, 1997:115). Mesmo no seio das crianças da classe dos vassalos (àcerca da organização social dos tuaregues, consultar Bernus, 1993; Bernezat, 1991; Nicolaisen, 1997; Vaes, 1992; basicamente no topo da pirâmide surgem os nobres, seguidos dos vassalos e na base da pirâmide a classe dos escravos), habituados a lidar muito mais de perto com outros animais domésticos, é notório o interesse exclusivo pelos bonecos camelo. Nas suas brincadeiras, desde muito novos, os meninos tuaregues constroem os seus próprios camelos, utilizando para o efeito ossos de cabra ou carneiro ou simplesmente esculpem-nos em pedra (V. Fig. 4, 5 e 6).


Fig. 3 - Desenho de uma criança tuaregue representando uma caravana de camelos


Fig. 4 - Brinquedos camelos. À esquerda: maxila de cabra, com sela e cameleiro (alt. 27,2 cm); à direita: pedra partida representando um camelo (alt. 4,2 cm)



Fig. 5 e 6 - Criança tuaregue a brincar com bonecos camelo esculpidos em pedra

Omnipresentes na vida dos tuaregues, os camelos são montados pelos rapazes desde a mais tenra idade. Com cerca de 3 ou 4 anos, por vezes mais novos, montam pela primeira vez um camelo e, com cerca de 10 anos conseguem montar um camelo sem sela, tarefa de difícil execução exigindo um perfeito domínio sobre o animal.


Fig. 7 - Criança com 18 meses em cima de um camelo

Foucauld (Chaker, 1984:89), refere-se à altura em que a criança se encontra preparada para montar um camelo, como sendo aquela logo após o período da circuncisão. Momento que igualmente marca a infância da criança tuaregue, como ritual e, que antecede um outro, assumindo porventura uma maior importância, a passagem à idade do jejuar e ao consequente direito a usar o taggelmoust, o véu tuaregue, marcando a passagem da infância à puberdade.

A idade do jejuar para os rapazes, acontece quando aparecem as primeiras pilosidades no seu corpo. Nas raparigas, o jejum inicia-se com a menarca.

O véu assume assim um papel importante na sociedade tuaregue, existindo contudo várias teorias quanto à sua função. A nosso ver e perante o exposto, é óbvio que ele terá como principal função, o assumir de um estatuto, facto pelo qual existe um período marcado por um ritual que confere ao tuaregue o direito ao uso e ao porte do véu.

A educação das raparigas não difere muito da dos rapazes. Passarão no entanto muito mais tempo próximo das suas mães, observando-as e imitando-as nas suas tarefas.

Por norma, os meninos e as meninas tuaregues tendem a separar-se nas suas brincadeiras. Tal como vimos, os rapazes centram-se em particular à volta de bonecos camelo, enquanto que as meninas brincarão com outro tipo de bonecos.



Fig. 8 e 9 - Boneca e boneco tuaregue

As Fig. 8 e 9, são outros exemplos de bonecos tuaregues. Na Fig. 8 deparamo-nos com uma boneca de tranças compridas, cabeça fabricada de contas e roupas de algodão. Ao analisarmos em pormenor a boneca, é curioso repararmos na representação dos seios e dos orgãos sexuais. Esta fotografia, retirada da obra de Nicolaisen (1997), representa uma mulher grávida. A mulher tuaregue continua a deter um estatuto incomparavelmente superior ao da mulher ocidental, em parte devido ao facto de ser considerada a geradora de vida. As crianças tuaregues são desde cedo confrontadas com tal facto, ou não estivessemos perante uma sociedade matriarcal. Contudo, nos dias que correm, sobre a pressão do Islão, as tradições matriarcais esbatem-se e, o papel político-social da mulher tuaregue é posto em questão, sobretudo em Tamanrasset, na região do Hoggar.

Um outro brinquedo que não poderemos deixar de referir são os amuletos. Na realidade, o mais espantoso em todo o vestuário tuaregue são os inúmeros tesouros que trazem suspensos ao pescoço por fios de couro. Seja a carteira para documentos, ou os pequenos sacos rectangulares ou quadrados em que guardam produtos mágicos, uns para as doenças outros para o azar, outros ainda guardando um pedaço de papel com um texto do Alcorão, o que é um facto, é que são numerosos os amuletos que o nómada transporta consigo. Acreditam que os maus espíritos percorrem todo o Sara.

As cranças tuaregues, desde muito novas, também os usam, não só no seu dia-a-dia (Fig. 2), como igualmente nas suas brincadeiras. São muitos os sacos minúsculos que os pais fabricam para as brincadeiras dos seus filhos (fig. 10).


Fig. 10 - Brinquedos representando sacos amuletos

Os finais de tarde são passados à volta de um chá. Nem a seca, a perda dos rebanhos ou a pobreza, alteram o desejo profundo de viverem totalmente o momento presente. O cerimonial do chá assume neste contexto um papel deveras importante.

O uso do chá modificou profundamente o meio sariano, assumindo um papel semelhante ao do alcool na Europa, como símbolo das relações sociais. O cerimonial do chá rompe a monotonia dos dias, tendo-se tornado numa necessidade. Concentrado e muito doce é igualmente uma bebida tónica, tornando-se indispensável durante as longas travessias do deserto.

A sua preparação é minuciosa, assumindo-se como um verdadeiro ritual, símbolo da hospitalidade tuaregue. São sempre servidos três copos de chá. O primeiro, muito forte para aliviar a secura do deserto, o segundo com muito açúcar para fornecer energia, o terceiro mais fraco para refrescar o corpo. Às crianças está reservado apenas um quarto copo, este ainda mais fraco que o terceiro.

Consideramos a hipótese de poder tratar-se de um ritual de iniciação prolongado a todo o cerimonial do chá, apesar de que nos relatos que surgem a este propósito, sejam apenas invocadas razões de saúde (Vaes, 1992; Nicolaisen, 1997; Bernezat, 1991). Certo é que as crianças tuaregues são desde muito novas inseridas no cerimonial, símbolo das relações sociais em todo o deserto do Sara.


Fig. 11 - Criança tuaregue participando no cerimonial do chá

De ritual em ritual, parece ser o percurso das práticas educativas no deserto do Sara. Contudo, a sedentarização forçada, com a consequente destruição da organização político-social do povo tuaregue, bem como a islamização de todo este espaço, constituirão por certo novos desafios para este povo e uma mudança radical nas suas práticas culturais.


Fig. 12 - Desenho de uma criança tuaregue


3. Uma pedagogia ritual, uma educação prática

Demos conta ao longo do exposto de todo um conjunto de rituais que caracterizam as práticas educativas das crianças tuaregues na região do Hoggar.

Segundo Erny (1987), a educação "considerada na sua dinâmica" visa a "transmissão de um património" assegurando uma continuidade. Trata-se do processo de transmissão permanente de cultura (Erny, 1987:16). Ainda de acordo com Erny, a educação tradicional atinge toda a sua plenitude por via das iniciações. "É através da pedagogia iniciática que surgem mais claramente os valores ideais que uma determinada sociedade propõe abertamente aos seus membros" (Erny, 1987:17).

De todo o exposto anteriormente, as práticas educativas na região do Hoggar, parecem processar-se seguindo um modelo de imitação, a que Erny chama de "modelo informal" oposta à "educação formal" cujo propósito é apenas o da imposição (Erny, 1987:18-19). Através de todos os rituais por que passam as crianças tuaregues, desde a identificação, passando pelo desenvolvimento, pela integração no seio do grupo, participação na vida social e finalmente a respectiva aceitação como membro desse mesmo grupo, encontramo-nos claramente perante uma "pedagogia ritual" (Erny, 1987:31).

O modelo educativo por via da imitação é bem visível junto do povo tuaregue. Perante um meio ambiente tão hostil quanto o deserto do Sara, apenas os iniciados terão alguma hipótese de sobrevivência.

Adultos e crianças misturam-se no dia-a-dia partilhando tarefas. Contudo, perante os acontecimentos que vão ocorrendo um pouco por todo o deserto do Sara, até que ponto beneficiarão as crianças Kel Ahaggar de toda esta educação prática de vivência de deserto?

Actualmente, vários são os tuaregues que defendem a importância da escolarização para a evoluçaõ da população nómada. O governo argelino, por exemplo, esforça-se na criação de internatos para acolher as crianças nómadas e "dar-lhes a instrução necessária" (Vaes, 1992: 410). Mas até que ponto essa instrução não poderá ser considerada como uma "educação formal" (Erny, 1987), imposta, sem preocupações pelas diversidades culturais do norte de África?

É no seio da família, tanto nos acampamentos como nas cidades, que os pequenos tuaregues aprendem a familiarizar-se com o meio particularmente severo que é o seu. Toda esta formação não é menos importante do que a recebida numa escola. Não se pode viver no Sara sem estar em perfeita simbiose com o seu meio natural. É através da educação prática, que as crianças tuaregues são iniciadas no seu meio ambiente. Os pequenos tuaregues de hoje, poderão ter de enfrentar um mundo diferente, onde o desenvolvimento industrial, mineiro e turístico, poderá mudar as suas condições de vida no seu espaço.

Valerá a pena transcrever o relato de um tuaregue, a sua experiência, os problemas sentidos, a propósito da escolarização.


"Frequentar a escola implica ter-se residência fixa, mas a vida nómada é muito errante. Quando entrei para a escola, foi muito difícil para mim separar-me da minha família. Não conseguia imaginar-me a viver num só local. Esta situação difícil deixou-me mais ou menos traumatizado. Não era capaz de conceber viver sem a minha mãe, nem a minha família de quem tanto eu gostava. Mas também sem leite, que era um componente importante da minha vida. Passei muitos anos sem conseguir adaptar-me verdadeiramente.

Reconheço que o meu pai gostava que eu andasse na escola, mas a minha mãe opunha-se totalmente. Foi por isso que ela consultou um marabout afim de ele fazer determinado feitiço. Esse sortilégio deveria atrofiar-me a inteligência. Há marabouts que prometem aos pais tornar os filhos surdos. Felizmente não fiqui nem pateta nem surdo e, continuei a frequentar a escola."
(retirado de Adalil, les filles des sables, de BANULS, Sylvie e Peter HELLER)


Tentámos de alguma forma situar as representações e as práticas educativas por parte dos pais tuaregues, no seu contexto sócio-cultural e ecológico, seguindo o modelo de N. Ramos (1990; 1993).

De acordo com N. Ramos, o comportamento dos pais em relação à criança no que concerne tanto às "representações, práticas educativas e estilos interactivos, constitui um domínio complexo, onde estão implicados padrões individuais e sociais, em que interagem a dimensão pessoal e fantasmática dos indivíduos e a dimensão social e cultural dos grupos humanos" (N. Ramos, 1990: 315-316).

Temos no entanto consciência do carácter introdutório do presente trabalho. Muito fica por investigar, numa análise que se pretenderia detalhada das práticas educativas expostas e, das consequências e repercussões destas na futura vida adulta das crianças tuaregues. A par dessas práticas, não poderíamos excluir os vastos problemas com que se debatem actualmente os tuaregues, em particular a sedentarização forçada e o consequente enfrentar de práticas educativas distantes das tradicionais.

Ficámo-nos pois, por uma análise iniciática a toda esta complexa questão.



Bibliografia

ABDALLAH-PRETCEILLE, M. (1986), Vers une pedagogie interculturelle, Paris, Pub. De la Sorbonne.

BERNEZAT, Odette (1991), Hommes et montagnes du Hoggar, Grenoble, Éditions Glénat.

CHAKER, Salem, Hélène CLAUDOT e Marceau GAST (1984), Textes touaregs en prose de Charles de Foucauld et A. de Calassanti-Motylinski [1922], Paris, Edisud.

DASEN, Pierre (1986), Cultures et développement cognitif, in Apprentissage et cultures, Paris, Ed. Karthala.

DUROU, Jean-Marc (1994), La passion du désert, Paris, Éditions de La Martinière.

ERNY, P. (1987), L'enfant et son milieu en Afrique noire, Paris, L'Harmattan.

NICOLAISEN, Johannes, e Ida NICOLAISEN (1997), The Pastoral Tuareg, 2 vols., Copenhagen, Rhodos International.

OUELLET, Fernand (1991), L'education interculturelle - Essai sur le contenu de la formation des maitres, Paris, Editions de l'Harmattan.

RAMOS, Maria da Conceição Pereira (1996), "Economia do trabalho, sócio-economia e migrações internacionais", in Entre a Economia e a Sociologia, Oeiras, Celta Editora, 254-264.

RAMOS, Natália (1990), "Educação Precoce e Práticas de cuidados Infantis em Meio Urbano", in Colóquio Viver n(a) Cidade, Lisboa, LNEC.

RAMOS, Natália (1993), "Le monde enchanté de l'apaisement et de l'endormissement au Portugal", in Les rituels du coucher de l'enfant - Variations culturelles, Paris, E.S.F..

STORK, Hélène (1986), "Le maternage hindou", in Apprentissage et cultures, Paris, Ed. Karthala.

VAES, Bénédicte, Gérard del MARMOL, e Albert d'OTREPPE (1992), Guide du Sahara, Hachette.



Créditos fotográficos

© BERNEZAT, CHAKER, NICOLAISEN




(texto escrito em Abr. 1999)

Tinariwen


© Thomas Dorn

Vencedores do galardão de melhor formação World Music do continente africano, pela BBC em 2005, os Tinariwen encontram-se profundamente ligados à causa do povo Tuaregue, apelando à consciencialização política para problemas como o exílio, a repressão e a extradição nos diversos países do deserto do Sara.

Conhecidos como o primeiro grupo a fundir a música tradicional Tuaregue com guitarras eléctricas, os Tinariwen são mais do que um grupo musical, representam uma verdadeira associação cultural com um objectivo muito forte: a defesa de um povo e da cultura Tuaregue.


© Tinariwen

Post originalmente publicado em Imagens: impressões, expressões...

Tuaregue, uma experiência de deserto

A 3 de Abril de 1992 era noticiado nos orgãos de comunicação social portuguesa os três ataques consecutivos levados a cabo por tuaregues, à expedição portuguesa que tentava efectuar a ligação Lisboa-Luanda ao longo do continente africano.

Viaturas, dinheiro, objectos e documentos pessoais desapareceram durante uma etapa de deserto. Só a intervenção por parte do governo português, que colocou à disposição da caravana um Hércules C-130 da Força Aérea, permitiu o repatriamento dos 70 expedicionários portugueses. O jornal Público noticiou o acontecimento com o sugestivo título "O dia mais longo no país dos tuaregues".

Foram várias as pessoas que nos dias seguintes me abordaram, para a pergunta redutora. Afinal os tuaregue eram "bons" ou "maus"? As notícias vindas a público contrariavam de alguma forma as imagens que eu vinha transmitindo ao longo dos anos, àcerca deste povo berbere do deserto, com os seus territórios repartidos pelos diversos países do norte de África.

Decorridos precisamente nove dias dos referidos incidentes, encontrava-me já em Tânger, preparado para rumar a sul, nas poucas pistas passíveis de serem atravessadas, sem autorização especial ou escolta militar.

O fascínio do deserto e pelo deserto. A sua dimensão oculta. Mano Dayak, antropólogo, um dos tuaregue que mais lutou pela causa do seu povo, escreveu um dia: "O deserto não se conta, vive-se" (Durou, 1994:8). Concordei eu próprio mais tarde com a veracidade de tal afirmação. Por mais relatos que tivesse lido sobre o Deserto do Sara, é a própria vivência que nos leva a conhecê-lo melhor.

O deserto é um espaço privilegiado de relações. De relações com o meio, de relações com os seus habitantes, de relações com nós próprios. É este processo de relações, de comunicação, que nos leva a conhecê-lo melhor.

Foi a necessidade de melhor compreender a minha relação com o deserto, a minha posição nesse processo de comunicação, que me levou a procurar testemunhos dos seus habitantes, relatos dos viajantes ao norte de África, relatos dos exploradores que o atravessaram. Enfim, testemunhos de experiências do deserto.

Foi assim que a minha rota se cruzou com "A Primeira Travessia do Sara em veículo motorizado", levada a cabo pela Citroën em 1922.



Tal expedição reunia todo um conjunto de ingredientes, cuja desconstrução me pareceu desde logo aliciante. Tratava-se à partida, da primeira travessia do deserto utilizando veículos motorizados, era empreendida por uma empresa, situava-se numa época de consolidação da política colonial europeia, no período pós Grande Guerra, em plena expansão industrial do continente europeu. Ao longo da expedição tinham sido realizadas centenas de fotografias que dariam origem à publicação do diário da expedição e, recolhidas imagens cinematográficas que deram origem ao grande filme documentário "A Travessia do Sara", cuja estreia recebeu o alto patrocínio do Presidente da República Francês.



A ideia base do projecto, segundo André Citroën, nasce da procura de uma ligação prática entre a Argélia e a África Ocidental Francesa. É em consequência da I Grande Guerra e devido à necessidade de fazer chegar à metrópole francesa os recursos existentes nas suas colónias (Senegal, Guiné e Congo) que surge a ideia do raide trans-sariano. O Sara surgia pois como o grande obstáculo que era necessário vencer.

É assim que cinco viaturas equipadas com um sistema de lagartas, transportando 10 exploradores e uma cadela (esta, com um papel activo ao longo de toda a expedição), partem de Touggourt a 17 de Dezembro, atravessam 3.500 quilómetros de deserto e, vinte e dois dias mais tarde, chegam a Tombouctou. O veículo motorizado acabara de vencer o deserto.



Vale a pena citar o discurso de André Citroën, quando teve conhecimento do êxito da expedição: "No momento em que entram na pérola do Níger, depois de terem executado esforços sobre-humanos, um trabalho de titã pela causa da humanidade e pelo triunfo da indústria francesa, faço questão de vos exprimir do fundo do coração a alegria que sinto" (cit. Wolgensinger, 1992, p.146).

Era a vitória da Citroën, da indústria francesa sobre o Sara. O deserto havia sido conquistado. Expressões que alimentavam o imaginário colonial, representações de um processo, sinais de supremacia. A Europa fazia história em África. O diário de viagem e o filme documentário encarregar-se-iam disso mesmo.

Paul Castelnau, doutorado em Ciências, era o geógrafo da expedição. Para além de outras tarefas, fora-lhe incumbida a realização das filmagens. Refere Haardt no diário, que "graças a Castelnau, a missão recolheu uma enorme quantidade de documentos do mais alto interesse" (Haardt, 1923, p.34). Tratava-se da recolha de imagens como objectos, acto revelador de um espírito positivista, da recolha da diversidade do mundo para posterior classificação e conservação. Como afirmaria Marc Piault, um "espírito de colecta, de identificação e de apropriação característico do desenvolvimento europeu" (1992:59).



A "Travessia do Sara" marca o espírito de uma época. A visão do Outro como um absurdo, sem valores, reconhecido apenas pelo seu valor exótico. Uma verdadeira des-realização dos Outros, segundo Piault (1992:59). Tais factos alimentavam e satisfaziam as necessidades dos leitores de livros-relato de expedições e as audiências dos filmes de exploração.

Os leitores e as audiências maravilhavam-se com os actos heróicos dos seus exploradores, sentiam-se eles próprios fazendo parte da aventura. O exótico e o misterioso completavam os ingredientes. O norte de África prestava-se a tal. Tombouctou, "a misteriosa", era o destino final. "De Touggourt à Tombouctou par l'Atlantide", o sub-título, remetia o leitor para a misteriosa origem dos tuaregue, a lenda da Atlântida.

A própria face velada do homem tuaregue servia o efeito mistério. O litham impossibilitava a sua desconstrução, impossibilitava o apoderar-se do Outro, facto que leva Haardt a usar a expressão, "irritantemente cobertos", referindo-se aos homens tuaregue.



As mulheres, igualmente sujeitas a um olhar, chocam pelas atitudes consideradas libertinas, provocadoras e, pela sua liberdade e autonomia perante o homem tuaregue. A honra da presença feminina nestas paragens, parece apenas ser salva por Flossie, a cadela "exploradora", de cor branca, símbolo da elegância feminina francesa, e do bom senso pelos comentários que vai tecendo àcerca de tudo quanto observa. Irrita-se com as danças e o barulho do tam-tam e afasta-se, comentando: "Estes disparates não me interessam" (Haardt, 1923:134).



A 26 de Dezembro de 1922 a expedição atinge a região do Hoggar. "É feita a distribuição de presentes a estes grandes larápios do deserto, que acham muito natural tudo quanto lhes oferecemos. Antigamente, antes de sermos os donos do país, ter-nos-iam massacrado para obterem tais ofertas pelos seus próprios meios" (Haardt, 1923:97).

Os finais de etapa eram apoteóticos. Pequenas vitórias acumuladas, num crescendo de emoção, contribuiriam para a conquista final do Sara. O ponto da situação era enviado diariamente para a Europa, via rádio. O mundo inteiro acompanhava o dia-a-dia da expedição. O desenvolvimento tecnológico lado a lado com a expansão colonial.

O deserto do Sara funcionaria como "um verdadeiro laboratório de ensaios" (Haardt, 1923:16) para as futuras expedições da Citroën. De mãos dadas, a exploração, a expansão colonial, o cinema e a etnografia. A apropriação do espaço, do território, dos Outros. Segundo Marc Piault, seria esta necessidade de apropriação de "sociedades cada vez mais distantes das nossas, tanto geograficamente, como fisicamente, materialmente ou culturalmente, a justificar todo o empreendimento da exploração" (Piault, 1992:59).



Em França, a recolha de imagens do mundo não era uma tarefa exclusiva dos etnólogos, como afirmou José Ribeiro, (1995: 66 e 80) referindo-se nomeadamente à empresa Citroën. Era a própria recolha de imagens que justificava as expedições. Refere Marc Piault a este propósito, que as imagens recolhidas "reforçavam o conjunto de representações e discursos sobre o progresso e, as missões «civilizadoras» do homem branco" (Piault, 1992:59).

Cinema, fotografia, antropologia e expansão colonial, num percurso paralelo. Este poderia ter sido o título, do presente texto.

A empresa Citroën, na sua página oficial da Internet, apresentava-nos um espaço dedicado ao tema "Citroën e a aventura". Aí, deparavamo-nos com o seguinte texto: "Expedições Citroën: você não imagina tudo o que a Citroën faz para reduzir a distância entre os povos" (Citroën, s.d.).

As marcas dos novos caminhos foram efectivamente deixadas. Para os tuaregue, ou melhor para os imazighen, homens livres como eles próprios se denominam, as consequências de tais marcas também permanecem na vastidão do Sara.

Para reflexão, gostaria apenas de referir um anúncio publicitário datado de 1994, em cujo corpo do texto lia-se: "Andar em plena liberdade e sem nunca parar é a especialidade da série limitada ZX Touareg".




Bibliografia
Citroën et l'Aventure, [online], disponível em: http: // www. citroen. com/ home-f.htm (acesso em 15.02.1999).
DUROU, Jean-Marc (1994), La Passion du Désert, Paris, Ed. de La Martinière.
HAARDT, Georges-Marie e Louis AUDOUIN-DUBREUIL (1923), La Premiére Traversée du Sahara en Automobile - De Touggourt à Tombouctou par l'Atlantide, Paris, Librairie Plon.
PIAULT, Marc-Henri (1986), "L'Anthropologie à la Recherche de ses images", in CinémAction, Paris, nº 38, pp. 52-57.
PIAULT, Marc-Henri (1992), "Du Colonialisme à l'Echange" in CinémAction, Paris, nº 64, pp.58-65.
RIBEIRO, José (1995), "Cem Anos de Imagens do Mundo, Panorama do Cinema Etnográfico Francês" in Imagens do Mundo - Mostra de Cinema Etnográfico Francês, Lisboa, C.E.A.S. / I.S.C.T.E., C.E.M.R.I. / Universidade Aberta, Serviço Cultural da Embaixada de França, pp. 65-81.
WOLGENSINGER, Jacques (1992), André Citroën, uma biografia, Lisboa, Contexto Editora.




nota | Comunicação apresentada nos Colóquios de Antropologia Visual realizados na Universidade Aberta (Delegação Norte) em 12.03.99

© em todas as imagens (HAARDT, Georges-Marie e Louis AUDOUIN-DUBREUIL (1923), La Premiére Traversée du Sahara en Automobile - De Touggourt à Tombouctou par l'Atlantide, Paris, Librairie Plon)
© ® Citroën


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Mulheres tuaregue

Os Tuaregues atribuem a sua origem a uma mãe ancestral, Tin Hinan, uma princesa oriunda da tribo dos Bérâber do sul marroquino. A lenda conta que terá atingido o deserto acompanhada apenas pela sua serva Takamat. Ao encontrarem-se com os Tuaregues, teriam dado origem, a primeira, à tribo nobre tuaregue, a segunda às respectivas tribos vassalas.

Realidade ou pura ficção, a verdade é que, por força desta lenda os Tuaregues encontraram nela a fonte de uma das suas tradições, a de uma sociedade organizada matriarcalmente.



"La reine Tin Hinan"
© Hocine Ziani - © A.D.A.G.P. Paris - © O.N.D.A. Alger
Colecção do governo argelino, Argel





Nina Walet Intalou, Presidente da Associação Taghreft Tinariwen
© Cécile Chaix

26/05/2009

Tuaregues, uma questão de identidade

1. Tuaregues, os berberes do deserto do Sara

Constituindo uma minoria nos países que compõem o norte de África, os Berberes ocupam contudo uma imensa área em relação ao seu número total. Encontramo-los disseminados em pequenos grupos na região ocidental do deserto egípcio, bem como na Líbia, em particular na região de Fezzan. Na Tunísia, os Berberes não representam mais de 1% do total da população do país, mas encontram-se espalhados praticamente ao longo de todo o território. Em maior número, os Berberes marroquinos parecem constituir cerca de 40% da população (1), com uma particular concentração no norte, na região montanhosa do Rif, e a sul, tanto no Alto-Atlas, com um número bastante significativo, como no Anti-Atlas.

Na Argélia, os Berberes representam cerca de 20% da população. Destes, um número reduzido formam os Tuaregues, com os seus dialectos próprios. Tratam-se contudo dos dialectos berberes mais ricos e os que menos influência árabe sofreram. Os Tuaregues ocupam uma imensa área do deserto do Sara cujos territórios se encontram repartidos particularmente pelo sul da Argélia, pelo norte do Níger, pelo Mali e pelo Burkina Faso. O seu número total é no entanto impreciso, variando as contagens entre os 500.000 e os 1.700.000 membros (2).

De um modo geral, e apesar de distribuídos por um vasto território repartido por um grande número de países, os Berberes encontram-se concentrados em particular pelas regiões montanhosas do norte de África, o Rif, a Cabília e a cordilheira do Atlas, bem como pela vastidão do deserto do Sara.

De todos os Berberes, os que até aos dias de hoje menos influência islâmica sofreram, foram os Tuaregues, cujo vocábulo significa em árabe, abandonados por Deus. Eles próprios se denominam Imazighen, homens livres, em tamasheq o dialecto tuaregue.

Sobre a origem dos Tuaregues existem inúmeras teorias, não sendo pacífico o facto de serem considerados Berberes. No entanto, vários são os autores que defendem tal conceito (Porch, 1986; Vaes, 1992; Brett 1997; Nicolaisen, 1997), parecendo-nos igualmente o mais plausível e sustentável. Os Berberes, habitantes pré-islâmicos do norte de África, terão fugido para sul e para as regiões montanhosas por força das invasões árabes. Brett chega a referir-se a este propósito como sendo os "locais que permitiram uma maior resistência à arabização" (1997:3).

Nómadas, guerreiros, agricultores e comerciantes, os Tuaregues desenvolveram diversas formas de vida complementares. Os pastores percorriam o deserto seguindo o ritmo das estações numa busca incessante de pastos para os animais. Sal, açúcar, chá, tâmaras e escravos constituíam a base de um comércio caravaneiro entre o norte de África e o Sael, ao longo de rotas controladas por eles próprios. O tráfico de escravos em África tornou-se num outro grande negócio para os Tuaregues até ao século XVI, altura em que começou a ser controlado pelos portugueses. O sedentarismo concentrava-se sobretudo nos oásis, sinal da presença de uma fonte de água limitada, mas permanente. A tâmara, a par de outros frutos era largamente cultivada, pois acreditavam no seu alto poder medicinal.

Actualmente, os Tuaregues vivem num estado que pouco tem a ver com o de outrora. Desde finais do século XIX, que todo um conjunto de acontecimentos têm vindo a provocar desequilíbrios no seio da sua sociedade. A colonização francesa, em particular, deixou marcas bem visíveis que se repercutiram de uma forma irreversível em toda a sua organização política, social e económica (Porch, 1986; Dayak, 1992; Durou, 1994).

Organizados numa sociedade hierarquizada, com o Amenokal (3) à cabeça, do qual dependem todas as tribos (Bernus, 1981:77 e ss.), cada uma com o seu próprio chefe, o Amrar, os Tuaregues atribuem a sua origem a uma mãe ancestral, a Tin Hinan, uma princesa oriunda da tribo dos Bérâber do sul marroquino. A lenda conta que terá atingido o deserto acompanhada apenas pela sua serva Takamat. Ao encontrarem-se com os Tuaregues, teriam dado origem, a primeira, à tribo nobre tuaregue, a segunda às respectivas tribos vassalas (Vaes, 1992:405).

Realidade ou pura ficção, a verdade é que, por força desta lenda os Tuaregues encontraram nela a fonte de uma das suas tradições, a de uma sociedade organizada matriarcalmente. A transmissão dos direitos de nobreza é realizada exclusivamente através das mulheres.

A mulher tuaregue goza assim de um elevado estatuto no interior da sua sociedade, capaz de fazer inveja a muitos dos movimentos feministas ocidentais. Apesar de islamizados, ou como defendemos, praticando um islamismo tuareguizado, são raríssimos os casos de poligamia. A mulher tuaregue nunca se encontra submetida à imposição do marido e nunca se casa antes da puberdade. Separa-se quando assim o deseja, ocasião em que organiza uma festa para tornar pública a sua liberdade. O conceito de virgindade também não existe na sociedade tuaregue.

Todos estes factos, a propósito da mulher tuaregue, parece terem sido objecto de atentas "observações" e erróneas interpretações, aquando da "Expedição Citroën" ao deserto do Sara em 1922 / 1923 (Haardt, 1923). Da leitura do diário da expedição, ressalta a imagem etnocêntrica da mulher tuaregue. As mulheres chocam pelas suas atitudes consideradas libertinas, provocadoras e, pela sua liberdade e autonomia perante o homem tuaregue (Paulino, 1999:6). Orgulhosas da sua condição, Fatima Ladjine (4) afirma que as mulheres Tuaregues lutam por preservar a sua condição e transmiti-la de pais para filhos (cit. Malesherber, sd.:2).

O equilíbrio em que parecia assentar a vida no deserto durante longos séculos, encontra um final aquando da colonização europeia, a que já nos referimos. De pouco valeu às confederações de tribos Tuaregues a luta travada contra a penetração francesa entre 1850 e 1919 (Porch, 1986; Durou, 1994; Durou, 1996).

Posteriormente, nos anos 60 do século XX, com a independência dos países que partilham todo o norte de África e a consequente divisão política do Sara, o traçado de fronteiras provoca uma inevitável divisão dos Tuaregues. Com as rotas de comércio controladas, as secas e o desenvolvimento industrial e mineiro, os Tuaregues vêm-se a braços com a sedentarização forçada (5).

Toda uma cultura parece assim iniciar um processo rápido de mutação. "Actualmente os Tuaregues pensam em berber, falam em árabe e têm de explicar-se em francês" (Malesherber, sd.:3).


2. Tuaregues, uma questão de Identidade

De todo o exposto, resulta óbvio o facto de nos encontrarmos perante as denominadas "culturas em contacto" (Neto, 1997; Neto, 1993; Abou, 1981). Neste sentido, a noção de aculturação, como "forma de mudança cultural suscitada pelo contacto com outras culturas" (Neto, 1997:43) é tão pertinente quanto complexa no presente caso em análise. Para tal, bastará recordarmos que seriam os Berberes os habitantes originais do norte de África e, que após as invasões árabes do século VII, "uma nova mentalidade e expressão" (Brett, 1997:81) é imposta. Digamos pois, que é com o decorrer dos séculos, dos finais do século VII até ao século IX em particular, que os novos habitantes dessa região provocam um desencadear de contactos "contínuos e directos" (Neto, 1997:43) originando uma perda de legitimidade e supremacia cultural do povo Berbere, através de todo o processo que foi (e ainda o é na actualidade) a islamização.

Apesar de terem aceite o Islão como nova religião, os Berberes mantiveram contudo alguns aspectos da cultura pré-islâmica e tradições rituais. A islamização parece nunca ter sido capaz de apagar em definitivo a cultura berbere, em parte devido aos refúgios geográfico-espaciais escolhidos, o deserto do Sara e as montanhas mais inacessíveis do norte de África. Desta forma foi possível preservar uma língua própria, diversos costumes e formas de organização social.

Por via dessa demarcação territorial bem definida, dessa língua e de uma bem organizada vida em comunidade, os Berberes "adquiriram um elevado sentido de independência e solidariedade" (Kazak, 1996:2).

Face a todos os problemas que têm vindo a ser referidos, coloca-se-nos a questão de sabermos até que ponto, o problema da aculturação não será um fenómeno em contínuo desenvolvimento em todo o norte de África, conduzindo a uma lenta e gradual perda de identidade do povo Berbere.

Tal problemática afigura-se pertinente, a partir do momento em que a mesma é analisada à luz da psicologia intercultural. Tratar-se-à da introdução de uma dimensão psicológica individual da aculturação (Neto, 1997:43), dado que, conforme refere Félix Neto, haverá que distinguir da aculturação, a aculturação psicológica. "Ao nível individual as mudanças surgem no comportamento, na identidade, nos valores e nas atitudes" (Neto, 1997:43).

Se por um lado tivermos em consideração que "para haver aculturação tem de haver contacto contínuo e directo" (Neto, 1997:47), igualmente deveremos ter presente que para existir aculturação psicológica, terão de se verificar mudanças ao nível individual desse contacto com outras culturas (Neto, 1997:43).

Surge assim a questão da identidade cultural e da consciência individual (Abou, 1981:40). De uma forma sucinta, abordaremos a questão da identidade do povo Tuaregue, bem como dois testemunhos individuais de emigrantes tuaregues.

Não é a cor da pele, o corte do cabelo, a condição social ou a riqueza que revelam o facto de nos encontrarmos perante um Tuaregue. Definem-se a si próprios como sendo Kel Tamasheq, os que falam tamasheq, ou como sendo Kel Taggelmoust, os que usam taggelmoust, o véu tuaregue. Tal significa a introdução de dois elementos característicos da identidade - a língua e a cultura.

Como refere Bernus, o tamasheq tal como o árabe, faz a ponte entre o Magrebe e a África negra (Bernus, 1993:71). Apenas não possui a força universal atribuída ao árabe como língua corânica. Contudo, o tamasheq é a língua utilizada em todas as relações sociais e comerciais. A par desta marca viva da cultura berbere, surge igualmente o tifinagh, os caracteres escritos tuaregues. O uso destes caracteres próprios ganha aliás actualmente uma importância crescente na troca de correspondência ou nas simples mensagens entre os acampamentos (Bernus, 1993; Nicolaisen, 1997).

Tal como referimos, um outro factor de coesão cultural é o vestuário. O véu tuaregue, o taggelmoust, é uma das provas disso mesmo. Usado em todas as ocasiões e em todos os lugares, o seu uso passa mesmo por um ritual que marca a passagem da adolescência à idade adulta, concedendo-se assim o direito ao porte do véu.

Mas até que ponto esta unidade cultural, não será afectada ao nível individual por força da emigração e respectiva sedentarização?

Analisemos pois o caso de Anya (6), uma rapariga tuaregue, da região do Hoggar na Argélia, emigrante em Bamako no Mali. Anya resolve partir por sua iniciativa, em busca de outras condições de vida. Encontra-as efectivamente na cidade, sendo notória a satisfação do momento actual, onde nada falta nessa vida citadina. Há em particular referências à alimentação e à água, bens que representam um problema constante no dia-a-dia da vida nómada.

É contudo curioso que casa com um homem tuaregue, igualmente residente em Bamako e, apercebemo-nos pelo desenrolar de um diálogo, da solidão que este sentia devido ao afastamento do seu povo, até ao dia em que conhece Anya.

As imagens que mostram a casa de ambos em Bamako, em particular as que se centram no estendal da roupa, mostram repetidamente em primeiro plano uma tékamist, a típica camisa tuaregue.

De igual forma, Anya refere que quando regressa ao acampamento para visitar a sua mãe (a mais de 1.800 km de distância), fica sempre satisfeita por não ter esquecido as tarefas tradicionais das mulheres tuaregues.

Mas o que acontecerá a este casal no dia em que tiverem de educar os seus filhos? Serão educados segundo o modelo tradicional tuaregue? A característica condição da mulher tuaregue, analisada anteriormente, será transmitida de pais para filhos? Individualmente, os filhos afastar-se-ão desses modelos, adoptando outros modos e costumes da sociedade de acolhimento?

Num outro espaço diferente, analisemos o caso de Brahim Litny, tuaregue oriundo do Níger, emigrante em Paris. No seu relato, Litny (1994) refere-se ao deserto como sendo o universo onde aprendeu a viver (Litny, 1994:147), afirmando mesmo que o deserto é a sua identidade, a sua casa (Litny, 1994:147).

Valerá a pena transcrever o seu discurso:

(No deserto) "reencontro a minha dimensão, reencontro o sentido das coisas, sinto-me no meu elemento natural. Em contrapartida, quando me encontro em Paris, sou constantemente obrigado a adaptar as minhas necessidades, sou obrigado a conformar-me com comportamentos, valores e discursos pouco habituais para mim." (Litny, 1994:147)

E termina dizendo:

"…neste período crucial da nossa história, é primordial termos em atenção (…) o que assimilamos de outras culturas e o que é essencial que salvaguardemos da nossa própria." (Litny, 1994:148)

A dimensão psicológica da aculturação é bem patente no discurso de Litny, havendo seguramente uma preocupação ao nível da salvaguarda de valores, atitudes e comportamentos (Neto, 1997:43).

Mas até que ponto estaremos aptos a responder a todas as perguntas formuladas? Até que ponto a aculturação psicológica dos filhos de emigrantes tuaregues não será uma realidade nas gerações vindouras?

Dos casos analisados parece não restarem dúvidas quanto à consciência de uma identidade tuaregue, mas nada nos indica o que poderá vir a ser o futuro. Félix Neto, ao analisar o caso concreto de emigrantes portugueses em França, afirma que "a identidade nacional aparece sobretudo associada aos que perspectivam o seu regresso antes da reforma ou um tanto quanto paradoxalmente nos que pensam instalar-se definitivamente" (Neto, 1993:59). No caso tuaregue, a sedentarização poderá ser entendida como uma "instalação definitiva".

Apenas o estudo aturado e prolongado no tempo nos poderia conduzir a um resultado mais próximo da realidade quanto ao futuro da "complexidade do processo identitário" (Neto, 1997: 55), destes Berberes oriundos do deserto do Sara.


Notas
(1) Ahmed Sefrioui (1987) indica uma estimativa de 60% de Berberes no total da população marroquina.
(2) Refira-se a este propósito que não incluímos os dados referentes à Associação Tuaregue Temoust cujo número apresentado se situa nos 3 milhões.
(3) Termo que designa o chefe das confederações de tribos Tuaregues (nobres e vassalas), cujo sinal de poder é o tobol, um tambor de grande diâmetro.
(4) Primeira mulher tuaregue a obter um título académico.
(5) Os relatos e testemunhos recolhidos na obra de Mano Dayak (1992), ilustram bem todos os problemas que afectam actualmente a sociedade tuaregue.
(6) Personagem central do filme-documentário de BANULS, Sylvie e Peter HELLER (s.d.), Adalil, les filles des sables, Filmkraft.


Bibliografia

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BERNUS, Edmond (1993), Touaregs Nigériens, Unité culturelle et diversité régionale d'un peuple pasteur, Paris, Éditions l'Harmattan.

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PORCH, Douglas (1986), The Conquest of the Sahara, New York, Fromm International.

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VAES, Bénédicte, Gérard del MARMOL, e Albert d'OTREPPE (1992), Guide du Sahara, Hachette.


(texto escrito em Abr. 1999)

Tuaregues, migrações numa sociedade nómada

1. Introdução

Analisar uma população caracterizada pelo nomadismo à luz dos conceitos teóricos das migrações, poderá parecer tarefa difícil e, acima de tudo, contraditória. Numa perspectiva antropológica, as migrações distinguem-se tanto do turismo como do nomadismo (SILVA, 1986: 291), representando a deslocação de pessoas ou grupos para zonas distanciadas do seu local habitual de residência e, que por consequência desse distanciamento se efectue a entrada num novo meio social e/ou sociocultural (SILVA, 1986: 291).

Analisar as migrações de uma sociedade nómada, o povo tuaregue, é pois o objectivo deste texto.

Cremos que um dos aspectos mais importantes para uma análise deste teor, foi levantado por John Jackson (1991), referindo-se-lhe como sendo um dos pressupostos que tem vindo sistematicamente a ser colocado no estudo das migrações, o "mito da sociedade estática" (JACKSON, 1991: 3). Por outras palavras, o pressuposto de que a tendência natural do homem é o sedentarismo. Tal ideia parece ignorar ou tentar fazer esquecer as grandes e constantes movimentações do homem ao longo dos séculos até aos nossos dias, nomeadamente as grandes rotas comerciais que sempre atravessaram a África e a Ásia, deslocando atrás de si populações inteiras.

Ao homem deverá estar sempre associada a ideia de movimento. Seja por força de catástrofes, guerras ou convulsões, seja pela necessidade de aumentar o seu rendimento económico, as migrações sempre fizeram parte da vida do homem. Em suma, a busca incessante de melhores condições de vida, fazem com que as sociedades humanas não sejam estáticas.

A "sociedade de fixação", segundo Jackson (1991), não existe nem nunca terá existido, tratando-se apenas de um conceito errado, que simplesmente teve como consequência infeliz a adopção da representação do migrante como um estranho ou uma pessoa marginal (JACKSON, 1991:4).

O estudo das migrações parece tomar hoje em dia um novo rumo, fruto em grande parte do impacto social, económico e cultural que elas mesmas representam, demonstrando assim a importância da mobilidade humana.

Não temos dúvidas da complexidade dos fenómenos migratórios, interligando um vasto "conjunto de relações sociais (económicas, sociológicas, mas também políticas, demográficas, culturais, linguísticas, psicológicas…)" (RAMOS, 1996: 254; RAMOS, 1995: 149), exigindo-se uma profunda análise pluridisciplinar.

A este propósito, a Profª C. Ramos chega a referir a "necessidade de investigadores polivalentes, capazes de conceberem as relações internacionais em termos de interacção económica, social e cultural entre povos pertencendo a formações nacionais e/ou étnicas diferentes" (RAMOS, 1996: 256).

O presente texto representa tão somente, perante tal complexidade exigida, uma introdução a uma análise que se pretenderia mais ampla e abrangente.


2. Desequilíbrios na sociedade tuaregue

Tudo parece indicar que os tuaregues que actualmente povoam o deserto do Sara, terão sido expulsos dos seus territórios do norte de África, aquando das invasões árabes, para sul. Empurrados para a região do Sara, espalharam-se por todo o deserto e, desempenharam durantes longos anos um importante papel no comércio entre o norte de África e a África subsariana (BRETT, 1997).

Apesar deste seu outrora importante desempenho no tráfego caravaneiro, praticamente inexistente nos dias de hoje, os tuaregues são basicamente pastores nómadas, ainda que esporadicamente se dediquem à agricultura, sobretudo nos oásis. A sua vida é regulada por um ciclo, numa busca incessante de água para os seus rebanhos. As constantes migrações que realizam, reflectem apenas a necessidade absoluta de sobrevivência, dos seus rebanhos e consequentemente a deles próprios.

Desde finais do séc. XIX, que uma série de acontecimentos, alheios aos próprios tuaregues, iniciaram a destruição da sua organização social, política e económica. Viram o início da destruição de todo o equilíbrio em que a sua sociedade assentava (PORCH, 1986; DUROU, 1994).

A colonização francesa do Sara iniciada em finais do séc. XIX, produziu efeitos irreversíveis no início do presente século. As dificuldades do terreno, não impediram vencer a resistência dos tuaregues e, as consequências desta derrota bem como a inevitável colonização, foram nefastas para toda a estrutura deste povo nómada.

A sociedade tuaregue assentava numa organização político-social extremamente complexa, na qual os escravos desempenhavam um papel deveras importante. Perante a administração francesa, a escravatura é proibida, por forma a debilitar todo o sistema tribal. Contudo, a maioria dos escravos decide continuar com os seus antigos amos, unidos por laços sentimentais, mais do que económicos (MATEU, s.d.).

Perante todos estes acontecimentos, os chefes das grandes confederações do Aïr, do Hoggar e do Ajjer, tentam negociar com os franceses uma solução política com o objectivo de conseguirem a independência de uma parte do território do Sara. Contudo, o rumo dos acontecimentos é outro. As independências dos novos Estados (ex-colónias francesas) sucedem-se e as reivindicações do povo tuaregue não são escutadas, agravando ainda mais a sua já delicada situação (PORCH, 1986).

As fronteiras traçadas pelos poderes europeus dividiram o povo tuaregue em vários Estados, criando dessa forma barreiras artificiais nos seus territórios de nomadismo. A absurda marcação de fronteiras em toda a região do Sara, teve ainda como consequência as frequentes tensões entre os Estados já depois das respectivas independências. Veja-se a este propósito o eterno conflito, que subsiste ainda actualmente entre o reino de Marrocos e a Argélia. Destes conflitos, resulta uma forte militarização dos espaços de fronteira e um exaustivo controlo aduaneiro, provocando graves dificuldades ao trânsito comercial caravaneiro e à transumância pastoral dos nómadas.

Os modernos meios de transporte acabaram igualmente com o importante papel desempenhado pelas caravanas comerciais e, a toda esta problemática, acrescente-se as grandes secas, em particular as dos anos 70 e 80, que provocam um golpe brutal no nomadismo.

Muitas tribos encontram-se actualmente divididas ou deslocadas, uma vez que os locais habituais de nomadismo são limitados ou desviados pelos governos locais, por forma a facilitar o seu controle e evitar a reorganização das tribos.

Por força das circunstâncias, uma emigração forçada para as cidades resulta numa sedentarização a contragosto. Perante todas estas situações, a condição "natural" do Homem tuaregue, o nomadismo, vê-se ameaçada. A estaticidade que a sedentarização representa (JACKSON, 1991: 1-4), torna-se numa verdadeira humilhação para todo o tuaregue.


3. Sociedade nómada ou migrante?

Conforme o sociólogo A. Giddens (1994: 48) assinala, também Thumerelle (1986:16) nos transmitira a ideia de que "a cada forma de civilização está associada uma combinação de tipos de mobilidade espacial". Actualmente, apesar de minoritários, existem ainda sociedades que baseiam a sua vida em deslocações permanentes ou regulares, são os nómadas ou seminómadas (THUMERELLE, 1986: 16-17). Um dos exemplos mais representativos deste tipo de sociedade é precisamente a sociedade tuaregue.

Moudour Zakara, ex-ministro dos Assuntos Sarianos do Níger e, especialista em questões nómadas, define um nómada como sendo "um homem cuja actividade e modo de vida são essencialmente caracterizados por migrações, ainda que isso não signifique que ele esteja em constante deslocação ao longo de um ano inteiro" (cit. VAES, 1992: 508). No Níger, os que se podem realmente qualificar de nómadas, uma ínfima minoria, são-no por tradição e necessidade, uma vez que conhecem desde o seu nascimento apenas aquele modo de vida, associado à plena liberdade e amor pelos grandes espaços, tornando-se bem difícil alterar o seu comportamento, mesmo de uma forma progressiva. As hipóteses para que tal alteração se venha a verificar, encontram-se dependentes da própria evolução da sociedade em questão, que A. Bourgeot designa por "movimento para a sedentarização" (cit. VAES, 1992: 401-404).

Tal movimento poderá tomar duas vias. A primeira, denominada sedentarização dinâmica, é o resultado de um dinamismo interno que conduz uma sociedade nómada à sedentarização; a segunda, a coerciva, conduz a sociedade à sedentarização por factores externos de diversa ordem, económica, política, jurídica, … (cit. VAES, 1992: 401-404).

Zakara distingue quatro "patamares" na evolução da sociedade nómada até à sedentarização, baseando a sua análise numa profunda interligação daquilo que considera "constrangimentos geográficos, económicos e políticos do meio" (cit. VAES, 1992: 510).
Passando a uma rápida descrição, os "nómadas puros", por definição, não praticam nenhuma forma de agricultura. O seu habitat é essencialmente móvel e as suas deslocações envolvem todo o grupo de acordo com um ciclo regular, entregando-se exclusivamente à criação de gado.

Num segundo "patamar" de evolução, surgem os "nómadas agricultores". Ainda que pratiquem a cultura do milho na época das chuvas, a sua actividade principal é igualmente a criação de gado. Tal como os nómadas puros, o habitat é móvel e as numerosas deslocações são realizadas por todo o grupo. Esta categoria esforça-se por conciliar a criação de gado e a agricultura, sendo no entanto esta última apenas a título complementar. Tal facto explica-se pela isenção na entrega de rendas, dos escravos aos seus senhores, na cultura do milho (NICOLAISEN, 1997; VAES, 1992).

A direcção e a importância das deslocações do nómada agricultor, são condicionadas essencialmente por dois locais. Os pontos de água onde passará a maior parte da estação seca e o local onde semeará o milho no início da estação das chuvas, ao qual regressará para o recolher durante o mês de Outubro.

Os "semi-nómadas", num terceiro "patamar", distinguem-se dos anteriores, pelo facto das suas deslocações raramente serem superiores a 30 quilómetros e, de se realizarem geralmente em redor de um ponto de água permanente, na proximidade do qual se encontram igualmente as culturas. As deslocações são realizadas apenas por uma parte do grupo, normalmente os mais jovens, que se deslocam com os animais.

Surge finalmente o último "patamar" de evolução, os "nómadas sedentarizados", fixando-se num determinado ponto seja por plena vontade, seja por força das circunstâncias. A idade, a doença, a pobreza, a seca, as epidemias que atacam os animais, constituem factores que podem transformar, súbita ou lentamente, um itinerante num sedentário. (VAES, 1992: 511).

O resultado da evolução em "patamares" não implica que uma hierarquia substitua a anterior. Bem pelo contrário, todas elas coexistem nos dias de hoje, sendo contudo o "patamar" dos "nómadas sedentarizados", a hierarquia mais representativa da actualidade.

Em cada uma das hierarquias de evolução referidas, o indivíduo é obrigado a adaptar-se a um novo meio ambiente, a um novo modo de vida, a novos costumes locais, por vezes a um novo dialecto local. Zakara refere a este propósito, que "a partir do momento em que o nómada se sedentarize, a operação termina com uma verdadeira mutação do indivíduo." (cit. VAES, 1992: 511)

Pensamos contudo a este propósito, não se tratar de uma "verdadeira mutação do indivíduo", mas tão somente a aquisição de um novo estatuto, o de emigrante. Aliás, a própria designação a que Zakara se refere, "nómada sedentarizado", implica um continuar a assumir uma identidade cultural nómada.

Brahim Litny, tuaregue do Mali, a viver actualmente em Paris, escreve: "O deserto é a minha identidade, o meu lar. Quando regresso ao deserto, sinto que reencontro o meu lar. Volto a encontrar a minha própria dimensão, o sentido das coisas, sinto-me no meu elemento natural. Em contrapartida, quando me encontro em Paris, sou constantemente obrigado a adaptar as minhas necessidades, sou obrigado a conformar-me com comportamentos, valores e discursos pouco habituais para mim" (LITNY, 1994: 147). Este é o verdadeiro sentimento do povo tuaregue. Paris poderia ser substituída por Bamako ou qualquer outra cidade do Sael, mas é um facto que nem o Mali, nem o Níger, nem a Argélia, nem qualquer outro país que partilha o deserto do Sara, é a pátria de um tuaregue. A sua pátria é o deserto, da mesma forma que a sua língua, própria, é o tamacheque. A este propósito convirá referir que, os tuaregues são um dos raros povos africanos a possuir um albabeto também próprio, o tifinar.

Torna-se claro concluir, perante um conceito espacial tão definido, uma identidade cultural tão característica (NICOLAISEN, 1997: vol.1, 394) e, uma organização político-social tão complexa (NICOLAISEN, 1997: vol.2, 501), que caracterizam o povo tuaregue, estarmos perante uma "pátria tuaregue" imaginária, que existe apenas no espírito dos tuaregues, mas na qual acreditam fortemente, e através da qual são estabelecidos todos os laços de união.

Thiolay vai mais longe afirmando que "os tuaregues não constituem nem uma raça, nem uma etnia mas um povo, que se reconhece na sua cultura sempre viva" (THIOLAY, 1995: 122). Embora não concordemos com a afirmação na sua plenitude, teremos de sublinhar o facto de constituirem um povo. À ideia de povo terá forçosamente de estar ligado o conceito de organização em Estado. Segundo A. Verdross, só é "povo" a comunidade que consiga "governar-se plenamente a si mesma, ou seja um povo organizado em Estado, ainda que surjam obstáculos a essa organização", nomeadamente o "domínio por uma potência estrangeira" (VERDROSS, 1976: 107).

Mediante todos os factos que foram sendo expostos ao longo do presente capítulo, estamos claramente perante os três domínios básicos, que segundo Jackson (1991: 6), caracterizam todo e qualquer fenómeno migratório: o espacial, o temporal e o social.

Assim, parece não restarem dúvidas que todos os tuaregues que actualmente habitam as cidades e aldeias dos países do norte de África, do Sael ou inclusivamente da Europa, são característicamente emigrantes, representando uma verdadeira diáspora, a dispersão do seu próprio povo. Tal facto vai aliás ao encontro daquilo que Pierre George (1984) nos apresenta como traços comuns de uma diáspora, a existência de uma identidade etnocultural própria, baseada em modos de vida, crenças e língua… e uma pátria comum (cit. BRUNEAU, 1994: 6).

Todos os factos que temos vindo a referir representam a consciência de identidade do povo tuaregue. Apesar de dispersos, a maior parte sedentarizados, pelos diversos países da região do Sara, tal não implica que se tenha operado uma mutação do indivíduo. Para que tal tivesse acontecido, essa consciência colectiva teria de ser a primeira a desaparecer. Segundo Bruneau, "os membros de uma diáspora podem estar perfeitamente integrados e aculturados nos países de acolhimento, mas não podem estar assimilados, senão teriam perdido toda a sua consciência identitária, e deixariam de constituir uma diáspora" (BRUNEAU, 1994: 8). No presente caso tuaregue tal não se verificou. A consciência identitária continua a existir. Os valores e a cultura tuaregue continuam a ser transmitidos de geração em geração, parecendo estarmos longe da quebra dessa cadeia contínua de identidade.

É-nos extremamente difícil no âmbito do presente trabalho, alongarmo-nos sobre a questão da autodeterminação do povo tuaregue e respectiva reivindicação dos territórios na região do Sara. No entanto, tudo parece indicar, que esta diáspora tuaregue, fará parte daquilo a que Bruneau se refere como sendo uma diáspora organizada à volta de um factor político (BRUNEAU, 1994: 16), a dispersão tuaregue devido à ocupação do seu território de origem por outras potências estrangeiras.

Tal facto é pois gerador dos conhecidos conflitos em toda a região do Sara, provocando estes uma enorme dificuldade na obtenção de números exactos sobre a população tuaregue.



Os números actuais são disso reveladores, variando entre os 1,6 / 1,7 milhões (LEE; LEVINSON) e, os 3 milhões proclamados pela associação tuaregue Temoust, sediada em França. Da análise do quadro, poderemos contudo concluir que a partir de 1996, os números em nada são comparáveis com os dos anos transactos. Significaria tal facto um aumento da taxa de natalidade a partir de 1996? Estamos em crer que não. Pelo contrário, devido aos inúmeros factores adversos já referidos (climatéricos, políticos e económicos entre outros), a existir alteração nessa taxa, ela teria forçosamente diminuído.

Tudo parece pois indicar, que as dificuldades de ordem técnica na contagem da população tuaregue, foram ultrapassadas, fruto dos movimentos migratórios, do imaginário "estado-nação sariano" para os países da região do Sara. A emigração para as cidades e aldeias da Argélia, da Líbia, do Mali ou do Níger, a par com a fundação por parte dos governos destes países, de autênticas cidades no meio do deserto, denominados "campos de refugiados" (simples acampamentos nómadas que possibilitam todo o controlo por parte das autoridades), dizíamos, possibilitou uma contagem mais precisa da população tuaregue.


4. Documentário Adalil, les filles des sables

Anya, é uma rapariga tuaregue, proveniente da região do Hoggar (Argélia) que decide emigrar para Bamako, capital do Mali. A acção do documentário decorre em grande parte aquando de uma vista de Anya ao acampamento onde se encontra a sua mãe. A conversa entre ambas, fornece um vasto leque de pistas, cujo trabalho de investigação seria por certo apaixonante, inserido num contexto migratório. Em particular, a tensão constante entre sociedade de origem e sociedade de acolhimento, as relações de emigrante com a respectiva família, os factores de atracção e de repulsão, sempre numa dupla perspectivação, a do que parte e a do que fica.



No Hoggar:

Mãe - "Não quero que as minhas filhas vão para a cidade e fiquem lá tão longe. As hipóteses de tornar a vê-las são remotas e, eu que sou mãe delas sinto uma grande mágoa.
Só podem corromper-se e desgraçar-se e eu gostava muito de voltar a ver a Anya.
Se a rapariga me abandona e vai para outra terra irá ter lá os seus filhos, irá tornar-se inútil para mim e para ela própria. A Anya foi para Bamako e eu tenho medo que ela se perca na cidade."




Em Bamako:

Anya - "A minha mãe nunca visitou nenhuma cidade. Julga que é um lugar repleto de perigos e infâmia. Convenceu-se que no dia em que puser os pés na cidade, irá penetrar num mundo que ela não compreende. Nem sequer tem o menor desejo de que eu lhe diga como é a cidade.
Mas a vida que eu e o Ahmed levamos aqui na cidade é boa. No entanto é com prazer antecipado que esperamos a ocasião de tornar a ver as tendas da nossa família.
Na cidade disponho de muitas coisas. Há sempre água que chegue e alimentos disponíveis em qualquer altura. Por outro lado, no deserto necessito de muito pouca coisa… mas a falta de água é constante. Os homens são obrigados a ir buscá-la muito longe. Isso faz com que a vida seja difícil."




No Hoggar:

Mãe - "Eu estava apavorada no que respeita à Anya. Não sou capaz de explicar a ninguém o medo terrível que sentia. Desde que os meus filhos se foram embora para a cidade, deixando-me aqui, ando cheia de medo de que eles morram lá sem eu ter voltado a vê-los. Uma mulher cega que permanece no mesmo sítio, vê muita coisa que uma rapariga irrequieta não distingue. Desde que a Anya foi para a cidade eu vivo cheia de medo.
Mas quando ela me visita, a minha alegria é maior do que o medo que eu senti depois de ela ter partido."


Anya - "A vossa vida de nómada é muito contingente. Quando o meu pai morreu deixou-nos apenas gado. Mas os animais desapareceram e, é como se ele não tivesse possuído nada. Se tivesse vivido na cidade talvez possuíssemos casas e carros, e essa riqueza tinha subsistido."
Mãe - "Julgas que na cidade não se dão calamidades? Mas há muitos anos a chuva levou tudo de enxurrada. Casas resistentes e jovens. As cidades também são vítimas de catástrofes naturais, contudo a terra aqui não devora as pessoas."

Anya - "Mas aqui há hienas e chacais que nos arrastam para longe."

Mãe - "Já não se encontram animais desses por estas bandas. Migraram para as redondezas da cidade… e, nas cidades as pessoas comem-se umas às outras."

(…)

Anya - "Nas cidades não há anos maus, quer haja seca quer não, as pessoas sobrevivem. Geralmente mal se apercebem dela.
Quando se tem muitos camelos fêmeas, pode dar-se o caso das manadas se extraviarem e de não se encontrar uma única fêmea. De repente uma pessoa fica sem nada."


Mãe - "Perder os animais é uma calamidade que pode suceder a toda a gente. Nessas alturas vai-se ter com os amigos e os parentes e pedem-se algumas cabeças de gado emprestadas."

Anya - "Exactamente… pede-se emprestado um animal que dê leite… Se os vizinhos tiverem um desses animais é como se fosse a própria pessoa a possuí-lo... Esta ajuda mútua é ancestral,… está-nos no sangue. Na cidade não existe nada disto…"

Mãe - "Eu vivo melhor que tu. Sou mais feliz, tenho leite, carne, água, faço a matança dos cabritos, faço sacos de água…"

Anya - "Mas esta vida no deserto deixa-te mais esgotada. Mesmo para fazeres um saco de água tens de esfolar a pele, curti-la, cozê-la, lavá-la… Um trabalho muito fatigante só para se poder beber. Na cidade não tenho nenhuma dificuldade em arranjar água. Tenho uma torneira em casa e posso ter água sempre que quiser."

Mãe - "Com a tua torneira na cidade não é apenas a água que corre, mas é também o teu dinheiro que desaparece.
Ao passo que eu só utilizo o meu machado, não preciso de dinheiro para satisfazer as minhas necessidades quotidianas.
A tua torneira da água é dinheiro, a essência da tua vida é o dinheiro. No teu caso nada se faz sem dinheiro. Na cidade, se um dia te levantas de manhã sem dinheiro, ficas com medo de perder a vida antes do anoitecer."


Anya - "Na cidade, consigo arranjar tudo num dia."

Mãe - "E o que é que obténs? Só consegues ter mais trabalho.
Todos os dias de manhã e de noite sigo os meus animais sem grande esforço. Ao fim do dia vou mungi-los sem nenhuma dificuldade."


Anya - "O trabalho de uma mulher que guarda gado é muito duro.
Sou mais feliz do que tu!"


Mãe - "Não. Eu sou capaz de arranjar tudo sózinha, não preciso de ninguém…"



Conforme já o haviamos referido, não nos iremos alongar em comentários que os diálogos expostos nos suscitam.

Gostaríamos apenas de terminar com a transcrição de algumas palavras da narradora, ela própria no papel de uma tuaregue, após outros cenários e diálogos cujos temas passam pela seca, pela pobreza, pela miséria e pela decisão de partir.

"(…) As cidades fascinam-vos ó homens, como uma mulher bela e feiticeira. (…) O teu coração habita num lugar remoto, e a distância dói como o primeiro parto. (…) Mesmo que as areias, o vento e as estrelas dançassem, não era capaz de voltar a rir alegremente, a menos que tu, meu filho, regresses."


5. Uma sociedade nómada em constante migração

Longe de pretendermos teorizar a questão tuaregue num contexto migratório, não queremos deixar de referir que uma análise detalhada de âmbito pluridisciplinar, conforme aliás já o haviamos referido (RAMOS, 1995: 149; RAMOS, 1996: 254), traria à luz por certo, um sem número de questões e eventuais conclusões.

Fica-nos no entanto a ideia de uma sociedade organizada em torno das migrações. Desde a sua expulsão do norte de África, até aos nossos dias, a mobilidade tem acompanhado a vida deste povo.

A estabilidade política da região facilitará porventura um estudo mais detalhado de toda esta problemática. Estamos no entanto em crer, que a dispersão deste povo, unido em redor de uma forte identidade etnocultural, fará por certo um dia história.

O presente trabalho, se outra finalidade não teve, levantou a questão do tuaregue como "ser estrangeiro" num território que era seu por natureza. Vítimas de perseguições pelos diversos Estados, apoiados por outros com intenções políticas duvidosas, o povo tuaregue, para além de todos os problemas levantados, debate-se ainda com a questão da exclusão social (como tantos outros emigrantes em tantas outras partes do mundo), nos locais onde se encontra sedentarizado. Outrora Senhores do Sara, são hoje considerados no Mali e no Níger como fazendo parte de uma minoria branca, na Argélia e na Líbia consideram-nos uma minoria negra.

Se esta sociedade nómada não constitui uma diáspora, constituirá por certo uma sociedade em constante migração.


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(texto escrito em Dez. 1998)