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26/05/2009

Tuaregues, uma questão de identidade

1. Tuaregues, os berberes do deserto do Sara

Constituindo uma minoria nos países que compõem o norte de África, os Berberes ocupam contudo uma imensa área em relação ao seu número total. Encontramo-los disseminados em pequenos grupos na região ocidental do deserto egípcio, bem como na Líbia, em particular na região de Fezzan. Na Tunísia, os Berberes não representam mais de 1% do total da população do país, mas encontram-se espalhados praticamente ao longo de todo o território. Em maior número, os Berberes marroquinos parecem constituir cerca de 40% da população (1), com uma particular concentração no norte, na região montanhosa do Rif, e a sul, tanto no Alto-Atlas, com um número bastante significativo, como no Anti-Atlas.

Na Argélia, os Berberes representam cerca de 20% da população. Destes, um número reduzido formam os Tuaregues, com os seus dialectos próprios. Tratam-se contudo dos dialectos berberes mais ricos e os que menos influência árabe sofreram. Os Tuaregues ocupam uma imensa área do deserto do Sara cujos territórios se encontram repartidos particularmente pelo sul da Argélia, pelo norte do Níger, pelo Mali e pelo Burkina Faso. O seu número total é no entanto impreciso, variando as contagens entre os 500.000 e os 1.700.000 membros (2).

De um modo geral, e apesar de distribuídos por um vasto território repartido por um grande número de países, os Berberes encontram-se concentrados em particular pelas regiões montanhosas do norte de África, o Rif, a Cabília e a cordilheira do Atlas, bem como pela vastidão do deserto do Sara.

De todos os Berberes, os que até aos dias de hoje menos influência islâmica sofreram, foram os Tuaregues, cujo vocábulo significa em árabe, abandonados por Deus. Eles próprios se denominam Imazighen, homens livres, em tamasheq o dialecto tuaregue.

Sobre a origem dos Tuaregues existem inúmeras teorias, não sendo pacífico o facto de serem considerados Berberes. No entanto, vários são os autores que defendem tal conceito (Porch, 1986; Vaes, 1992; Brett 1997; Nicolaisen, 1997), parecendo-nos igualmente o mais plausível e sustentável. Os Berberes, habitantes pré-islâmicos do norte de África, terão fugido para sul e para as regiões montanhosas por força das invasões árabes. Brett chega a referir-se a este propósito como sendo os "locais que permitiram uma maior resistência à arabização" (1997:3).

Nómadas, guerreiros, agricultores e comerciantes, os Tuaregues desenvolveram diversas formas de vida complementares. Os pastores percorriam o deserto seguindo o ritmo das estações numa busca incessante de pastos para os animais. Sal, açúcar, chá, tâmaras e escravos constituíam a base de um comércio caravaneiro entre o norte de África e o Sael, ao longo de rotas controladas por eles próprios. O tráfico de escravos em África tornou-se num outro grande negócio para os Tuaregues até ao século XVI, altura em que começou a ser controlado pelos portugueses. O sedentarismo concentrava-se sobretudo nos oásis, sinal da presença de uma fonte de água limitada, mas permanente. A tâmara, a par de outros frutos era largamente cultivada, pois acreditavam no seu alto poder medicinal.

Actualmente, os Tuaregues vivem num estado que pouco tem a ver com o de outrora. Desde finais do século XIX, que todo um conjunto de acontecimentos têm vindo a provocar desequilíbrios no seio da sua sociedade. A colonização francesa, em particular, deixou marcas bem visíveis que se repercutiram de uma forma irreversível em toda a sua organização política, social e económica (Porch, 1986; Dayak, 1992; Durou, 1994).

Organizados numa sociedade hierarquizada, com o Amenokal (3) à cabeça, do qual dependem todas as tribos (Bernus, 1981:77 e ss.), cada uma com o seu próprio chefe, o Amrar, os Tuaregues atribuem a sua origem a uma mãe ancestral, a Tin Hinan, uma princesa oriunda da tribo dos Bérâber do sul marroquino. A lenda conta que terá atingido o deserto acompanhada apenas pela sua serva Takamat. Ao encontrarem-se com os Tuaregues, teriam dado origem, a primeira, à tribo nobre tuaregue, a segunda às respectivas tribos vassalas (Vaes, 1992:405).

Realidade ou pura ficção, a verdade é que, por força desta lenda os Tuaregues encontraram nela a fonte de uma das suas tradições, a de uma sociedade organizada matriarcalmente. A transmissão dos direitos de nobreza é realizada exclusivamente através das mulheres.

A mulher tuaregue goza assim de um elevado estatuto no interior da sua sociedade, capaz de fazer inveja a muitos dos movimentos feministas ocidentais. Apesar de islamizados, ou como defendemos, praticando um islamismo tuareguizado, são raríssimos os casos de poligamia. A mulher tuaregue nunca se encontra submetida à imposição do marido e nunca se casa antes da puberdade. Separa-se quando assim o deseja, ocasião em que organiza uma festa para tornar pública a sua liberdade. O conceito de virgindade também não existe na sociedade tuaregue.

Todos estes factos, a propósito da mulher tuaregue, parece terem sido objecto de atentas "observações" e erróneas interpretações, aquando da "Expedição Citroën" ao deserto do Sara em 1922 / 1923 (Haardt, 1923). Da leitura do diário da expedição, ressalta a imagem etnocêntrica da mulher tuaregue. As mulheres chocam pelas suas atitudes consideradas libertinas, provocadoras e, pela sua liberdade e autonomia perante o homem tuaregue (Paulino, 1999:6). Orgulhosas da sua condição, Fatima Ladjine (4) afirma que as mulheres Tuaregues lutam por preservar a sua condição e transmiti-la de pais para filhos (cit. Malesherber, sd.:2).

O equilíbrio em que parecia assentar a vida no deserto durante longos séculos, encontra um final aquando da colonização europeia, a que já nos referimos. De pouco valeu às confederações de tribos Tuaregues a luta travada contra a penetração francesa entre 1850 e 1919 (Porch, 1986; Durou, 1994; Durou, 1996).

Posteriormente, nos anos 60 do século XX, com a independência dos países que partilham todo o norte de África e a consequente divisão política do Sara, o traçado de fronteiras provoca uma inevitável divisão dos Tuaregues. Com as rotas de comércio controladas, as secas e o desenvolvimento industrial e mineiro, os Tuaregues vêm-se a braços com a sedentarização forçada (5).

Toda uma cultura parece assim iniciar um processo rápido de mutação. "Actualmente os Tuaregues pensam em berber, falam em árabe e têm de explicar-se em francês" (Malesherber, sd.:3).


2. Tuaregues, uma questão de Identidade

De todo o exposto, resulta óbvio o facto de nos encontrarmos perante as denominadas "culturas em contacto" (Neto, 1997; Neto, 1993; Abou, 1981). Neste sentido, a noção de aculturação, como "forma de mudança cultural suscitada pelo contacto com outras culturas" (Neto, 1997:43) é tão pertinente quanto complexa no presente caso em análise. Para tal, bastará recordarmos que seriam os Berberes os habitantes originais do norte de África e, que após as invasões árabes do século VII, "uma nova mentalidade e expressão" (Brett, 1997:81) é imposta. Digamos pois, que é com o decorrer dos séculos, dos finais do século VII até ao século IX em particular, que os novos habitantes dessa região provocam um desencadear de contactos "contínuos e directos" (Neto, 1997:43) originando uma perda de legitimidade e supremacia cultural do povo Berbere, através de todo o processo que foi (e ainda o é na actualidade) a islamização.

Apesar de terem aceite o Islão como nova religião, os Berberes mantiveram contudo alguns aspectos da cultura pré-islâmica e tradições rituais. A islamização parece nunca ter sido capaz de apagar em definitivo a cultura berbere, em parte devido aos refúgios geográfico-espaciais escolhidos, o deserto do Sara e as montanhas mais inacessíveis do norte de África. Desta forma foi possível preservar uma língua própria, diversos costumes e formas de organização social.

Por via dessa demarcação territorial bem definida, dessa língua e de uma bem organizada vida em comunidade, os Berberes "adquiriram um elevado sentido de independência e solidariedade" (Kazak, 1996:2).

Face a todos os problemas que têm vindo a ser referidos, coloca-se-nos a questão de sabermos até que ponto, o problema da aculturação não será um fenómeno em contínuo desenvolvimento em todo o norte de África, conduzindo a uma lenta e gradual perda de identidade do povo Berbere.

Tal problemática afigura-se pertinente, a partir do momento em que a mesma é analisada à luz da psicologia intercultural. Tratar-se-à da introdução de uma dimensão psicológica individual da aculturação (Neto, 1997:43), dado que, conforme refere Félix Neto, haverá que distinguir da aculturação, a aculturação psicológica. "Ao nível individual as mudanças surgem no comportamento, na identidade, nos valores e nas atitudes" (Neto, 1997:43).

Se por um lado tivermos em consideração que "para haver aculturação tem de haver contacto contínuo e directo" (Neto, 1997:47), igualmente deveremos ter presente que para existir aculturação psicológica, terão de se verificar mudanças ao nível individual desse contacto com outras culturas (Neto, 1997:43).

Surge assim a questão da identidade cultural e da consciência individual (Abou, 1981:40). De uma forma sucinta, abordaremos a questão da identidade do povo Tuaregue, bem como dois testemunhos individuais de emigrantes tuaregues.

Não é a cor da pele, o corte do cabelo, a condição social ou a riqueza que revelam o facto de nos encontrarmos perante um Tuaregue. Definem-se a si próprios como sendo Kel Tamasheq, os que falam tamasheq, ou como sendo Kel Taggelmoust, os que usam taggelmoust, o véu tuaregue. Tal significa a introdução de dois elementos característicos da identidade - a língua e a cultura.

Como refere Bernus, o tamasheq tal como o árabe, faz a ponte entre o Magrebe e a África negra (Bernus, 1993:71). Apenas não possui a força universal atribuída ao árabe como língua corânica. Contudo, o tamasheq é a língua utilizada em todas as relações sociais e comerciais. A par desta marca viva da cultura berbere, surge igualmente o tifinagh, os caracteres escritos tuaregues. O uso destes caracteres próprios ganha aliás actualmente uma importância crescente na troca de correspondência ou nas simples mensagens entre os acampamentos (Bernus, 1993; Nicolaisen, 1997).

Tal como referimos, um outro factor de coesão cultural é o vestuário. O véu tuaregue, o taggelmoust, é uma das provas disso mesmo. Usado em todas as ocasiões e em todos os lugares, o seu uso passa mesmo por um ritual que marca a passagem da adolescência à idade adulta, concedendo-se assim o direito ao porte do véu.

Mas até que ponto esta unidade cultural, não será afectada ao nível individual por força da emigração e respectiva sedentarização?

Analisemos pois o caso de Anya (6), uma rapariga tuaregue, da região do Hoggar na Argélia, emigrante em Bamako no Mali. Anya resolve partir por sua iniciativa, em busca de outras condições de vida. Encontra-as efectivamente na cidade, sendo notória a satisfação do momento actual, onde nada falta nessa vida citadina. Há em particular referências à alimentação e à água, bens que representam um problema constante no dia-a-dia da vida nómada.

É contudo curioso que casa com um homem tuaregue, igualmente residente em Bamako e, apercebemo-nos pelo desenrolar de um diálogo, da solidão que este sentia devido ao afastamento do seu povo, até ao dia em que conhece Anya.

As imagens que mostram a casa de ambos em Bamako, em particular as que se centram no estendal da roupa, mostram repetidamente em primeiro plano uma tékamist, a típica camisa tuaregue.

De igual forma, Anya refere que quando regressa ao acampamento para visitar a sua mãe (a mais de 1.800 km de distância), fica sempre satisfeita por não ter esquecido as tarefas tradicionais das mulheres tuaregues.

Mas o que acontecerá a este casal no dia em que tiverem de educar os seus filhos? Serão educados segundo o modelo tradicional tuaregue? A característica condição da mulher tuaregue, analisada anteriormente, será transmitida de pais para filhos? Individualmente, os filhos afastar-se-ão desses modelos, adoptando outros modos e costumes da sociedade de acolhimento?

Num outro espaço diferente, analisemos o caso de Brahim Litny, tuaregue oriundo do Níger, emigrante em Paris. No seu relato, Litny (1994) refere-se ao deserto como sendo o universo onde aprendeu a viver (Litny, 1994:147), afirmando mesmo que o deserto é a sua identidade, a sua casa (Litny, 1994:147).

Valerá a pena transcrever o seu discurso:

(No deserto) "reencontro a minha dimensão, reencontro o sentido das coisas, sinto-me no meu elemento natural. Em contrapartida, quando me encontro em Paris, sou constantemente obrigado a adaptar as minhas necessidades, sou obrigado a conformar-me com comportamentos, valores e discursos pouco habituais para mim." (Litny, 1994:147)

E termina dizendo:

"…neste período crucial da nossa história, é primordial termos em atenção (…) o que assimilamos de outras culturas e o que é essencial que salvaguardemos da nossa própria." (Litny, 1994:148)

A dimensão psicológica da aculturação é bem patente no discurso de Litny, havendo seguramente uma preocupação ao nível da salvaguarda de valores, atitudes e comportamentos (Neto, 1997:43).

Mas até que ponto estaremos aptos a responder a todas as perguntas formuladas? Até que ponto a aculturação psicológica dos filhos de emigrantes tuaregues não será uma realidade nas gerações vindouras?

Dos casos analisados parece não restarem dúvidas quanto à consciência de uma identidade tuaregue, mas nada nos indica o que poderá vir a ser o futuro. Félix Neto, ao analisar o caso concreto de emigrantes portugueses em França, afirma que "a identidade nacional aparece sobretudo associada aos que perspectivam o seu regresso antes da reforma ou um tanto quanto paradoxalmente nos que pensam instalar-se definitivamente" (Neto, 1993:59). No caso tuaregue, a sedentarização poderá ser entendida como uma "instalação definitiva".

Apenas o estudo aturado e prolongado no tempo nos poderia conduzir a um resultado mais próximo da realidade quanto ao futuro da "complexidade do processo identitário" (Neto, 1997: 55), destes Berberes oriundos do deserto do Sara.


Notas
(1) Ahmed Sefrioui (1987) indica uma estimativa de 60% de Berberes no total da população marroquina.
(2) Refira-se a este propósito que não incluímos os dados referentes à Associação Tuaregue Temoust cujo número apresentado se situa nos 3 milhões.
(3) Termo que designa o chefe das confederações de tribos Tuaregues (nobres e vassalas), cujo sinal de poder é o tobol, um tambor de grande diâmetro.
(4) Primeira mulher tuaregue a obter um título académico.
(5) Os relatos e testemunhos recolhidos na obra de Mano Dayak (1992), ilustram bem todos os problemas que afectam actualmente a sociedade tuaregue.
(6) Personagem central do filme-documentário de BANULS, Sylvie e Peter HELLER (s.d.), Adalil, les filles des sables, Filmkraft.


Bibliografia

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BERNUS, Edmond (1993), Touaregs Nigériens, Unité culturelle et diversité régionale d'un peuple pasteur, Paris, Éditions l'Harmattan.

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CAMILLERI, Carmel (1989), "La culture et l'identité culturelle: champ notionnel et devenir" in Chocs de cultures: concepts et enjeux pratiques de l'interculturel, Paris, Editions de l'Harmattan.

DAYAK, Mano (1992), Touareg, la tragédie, s.l., Editions Lattès.

DUROU, Jean-Marc (1994), La passion du désert, Paris, Éditions de La Martinière.

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NETO, Félix (1993), Psicologia da Migração Portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta.

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PAULINO, Fernando Faria (1999), Tuaregues, uma Experiência de Deserto, comunicação apresentada nos Colóquios de Antropologia Visual da Universidade Aberta, 12 de Março, Porto.

PORCH, Douglas (1986), The Conquest of the Sahara, New York, Fromm International.

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VAES, Bénédicte, Gérard del MARMOL, e Albert d'OTREPPE (1992), Guide du Sahara, Hachette.


(texto escrito em Abr. 1999)

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