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26/05/2009

Tuaregues, migrações numa sociedade nómada

1. Introdução

Analisar uma população caracterizada pelo nomadismo à luz dos conceitos teóricos das migrações, poderá parecer tarefa difícil e, acima de tudo, contraditória. Numa perspectiva antropológica, as migrações distinguem-se tanto do turismo como do nomadismo (SILVA, 1986: 291), representando a deslocação de pessoas ou grupos para zonas distanciadas do seu local habitual de residência e, que por consequência desse distanciamento se efectue a entrada num novo meio social e/ou sociocultural (SILVA, 1986: 291).

Analisar as migrações de uma sociedade nómada, o povo tuaregue, é pois o objectivo deste texto.

Cremos que um dos aspectos mais importantes para uma análise deste teor, foi levantado por John Jackson (1991), referindo-se-lhe como sendo um dos pressupostos que tem vindo sistematicamente a ser colocado no estudo das migrações, o "mito da sociedade estática" (JACKSON, 1991: 3). Por outras palavras, o pressuposto de que a tendência natural do homem é o sedentarismo. Tal ideia parece ignorar ou tentar fazer esquecer as grandes e constantes movimentações do homem ao longo dos séculos até aos nossos dias, nomeadamente as grandes rotas comerciais que sempre atravessaram a África e a Ásia, deslocando atrás de si populações inteiras.

Ao homem deverá estar sempre associada a ideia de movimento. Seja por força de catástrofes, guerras ou convulsões, seja pela necessidade de aumentar o seu rendimento económico, as migrações sempre fizeram parte da vida do homem. Em suma, a busca incessante de melhores condições de vida, fazem com que as sociedades humanas não sejam estáticas.

A "sociedade de fixação", segundo Jackson (1991), não existe nem nunca terá existido, tratando-se apenas de um conceito errado, que simplesmente teve como consequência infeliz a adopção da representação do migrante como um estranho ou uma pessoa marginal (JACKSON, 1991:4).

O estudo das migrações parece tomar hoje em dia um novo rumo, fruto em grande parte do impacto social, económico e cultural que elas mesmas representam, demonstrando assim a importância da mobilidade humana.

Não temos dúvidas da complexidade dos fenómenos migratórios, interligando um vasto "conjunto de relações sociais (económicas, sociológicas, mas também políticas, demográficas, culturais, linguísticas, psicológicas…)" (RAMOS, 1996: 254; RAMOS, 1995: 149), exigindo-se uma profunda análise pluridisciplinar.

A este propósito, a Profª C. Ramos chega a referir a "necessidade de investigadores polivalentes, capazes de conceberem as relações internacionais em termos de interacção económica, social e cultural entre povos pertencendo a formações nacionais e/ou étnicas diferentes" (RAMOS, 1996: 256).

O presente texto representa tão somente, perante tal complexidade exigida, uma introdução a uma análise que se pretenderia mais ampla e abrangente.


2. Desequilíbrios na sociedade tuaregue

Tudo parece indicar que os tuaregues que actualmente povoam o deserto do Sara, terão sido expulsos dos seus territórios do norte de África, aquando das invasões árabes, para sul. Empurrados para a região do Sara, espalharam-se por todo o deserto e, desempenharam durantes longos anos um importante papel no comércio entre o norte de África e a África subsariana (BRETT, 1997).

Apesar deste seu outrora importante desempenho no tráfego caravaneiro, praticamente inexistente nos dias de hoje, os tuaregues são basicamente pastores nómadas, ainda que esporadicamente se dediquem à agricultura, sobretudo nos oásis. A sua vida é regulada por um ciclo, numa busca incessante de água para os seus rebanhos. As constantes migrações que realizam, reflectem apenas a necessidade absoluta de sobrevivência, dos seus rebanhos e consequentemente a deles próprios.

Desde finais do séc. XIX, que uma série de acontecimentos, alheios aos próprios tuaregues, iniciaram a destruição da sua organização social, política e económica. Viram o início da destruição de todo o equilíbrio em que a sua sociedade assentava (PORCH, 1986; DUROU, 1994).

A colonização francesa do Sara iniciada em finais do séc. XIX, produziu efeitos irreversíveis no início do presente século. As dificuldades do terreno, não impediram vencer a resistência dos tuaregues e, as consequências desta derrota bem como a inevitável colonização, foram nefastas para toda a estrutura deste povo nómada.

A sociedade tuaregue assentava numa organização político-social extremamente complexa, na qual os escravos desempenhavam um papel deveras importante. Perante a administração francesa, a escravatura é proibida, por forma a debilitar todo o sistema tribal. Contudo, a maioria dos escravos decide continuar com os seus antigos amos, unidos por laços sentimentais, mais do que económicos (MATEU, s.d.).

Perante todos estes acontecimentos, os chefes das grandes confederações do Aïr, do Hoggar e do Ajjer, tentam negociar com os franceses uma solução política com o objectivo de conseguirem a independência de uma parte do território do Sara. Contudo, o rumo dos acontecimentos é outro. As independências dos novos Estados (ex-colónias francesas) sucedem-se e as reivindicações do povo tuaregue não são escutadas, agravando ainda mais a sua já delicada situação (PORCH, 1986).

As fronteiras traçadas pelos poderes europeus dividiram o povo tuaregue em vários Estados, criando dessa forma barreiras artificiais nos seus territórios de nomadismo. A absurda marcação de fronteiras em toda a região do Sara, teve ainda como consequência as frequentes tensões entre os Estados já depois das respectivas independências. Veja-se a este propósito o eterno conflito, que subsiste ainda actualmente entre o reino de Marrocos e a Argélia. Destes conflitos, resulta uma forte militarização dos espaços de fronteira e um exaustivo controlo aduaneiro, provocando graves dificuldades ao trânsito comercial caravaneiro e à transumância pastoral dos nómadas.

Os modernos meios de transporte acabaram igualmente com o importante papel desempenhado pelas caravanas comerciais e, a toda esta problemática, acrescente-se as grandes secas, em particular as dos anos 70 e 80, que provocam um golpe brutal no nomadismo.

Muitas tribos encontram-se actualmente divididas ou deslocadas, uma vez que os locais habituais de nomadismo são limitados ou desviados pelos governos locais, por forma a facilitar o seu controle e evitar a reorganização das tribos.

Por força das circunstâncias, uma emigração forçada para as cidades resulta numa sedentarização a contragosto. Perante todas estas situações, a condição "natural" do Homem tuaregue, o nomadismo, vê-se ameaçada. A estaticidade que a sedentarização representa (JACKSON, 1991: 1-4), torna-se numa verdadeira humilhação para todo o tuaregue.


3. Sociedade nómada ou migrante?

Conforme o sociólogo A. Giddens (1994: 48) assinala, também Thumerelle (1986:16) nos transmitira a ideia de que "a cada forma de civilização está associada uma combinação de tipos de mobilidade espacial". Actualmente, apesar de minoritários, existem ainda sociedades que baseiam a sua vida em deslocações permanentes ou regulares, são os nómadas ou seminómadas (THUMERELLE, 1986: 16-17). Um dos exemplos mais representativos deste tipo de sociedade é precisamente a sociedade tuaregue.

Moudour Zakara, ex-ministro dos Assuntos Sarianos do Níger e, especialista em questões nómadas, define um nómada como sendo "um homem cuja actividade e modo de vida são essencialmente caracterizados por migrações, ainda que isso não signifique que ele esteja em constante deslocação ao longo de um ano inteiro" (cit. VAES, 1992: 508). No Níger, os que se podem realmente qualificar de nómadas, uma ínfima minoria, são-no por tradição e necessidade, uma vez que conhecem desde o seu nascimento apenas aquele modo de vida, associado à plena liberdade e amor pelos grandes espaços, tornando-se bem difícil alterar o seu comportamento, mesmo de uma forma progressiva. As hipóteses para que tal alteração se venha a verificar, encontram-se dependentes da própria evolução da sociedade em questão, que A. Bourgeot designa por "movimento para a sedentarização" (cit. VAES, 1992: 401-404).

Tal movimento poderá tomar duas vias. A primeira, denominada sedentarização dinâmica, é o resultado de um dinamismo interno que conduz uma sociedade nómada à sedentarização; a segunda, a coerciva, conduz a sociedade à sedentarização por factores externos de diversa ordem, económica, política, jurídica, … (cit. VAES, 1992: 401-404).

Zakara distingue quatro "patamares" na evolução da sociedade nómada até à sedentarização, baseando a sua análise numa profunda interligação daquilo que considera "constrangimentos geográficos, económicos e políticos do meio" (cit. VAES, 1992: 510).
Passando a uma rápida descrição, os "nómadas puros", por definição, não praticam nenhuma forma de agricultura. O seu habitat é essencialmente móvel e as suas deslocações envolvem todo o grupo de acordo com um ciclo regular, entregando-se exclusivamente à criação de gado.

Num segundo "patamar" de evolução, surgem os "nómadas agricultores". Ainda que pratiquem a cultura do milho na época das chuvas, a sua actividade principal é igualmente a criação de gado. Tal como os nómadas puros, o habitat é móvel e as numerosas deslocações são realizadas por todo o grupo. Esta categoria esforça-se por conciliar a criação de gado e a agricultura, sendo no entanto esta última apenas a título complementar. Tal facto explica-se pela isenção na entrega de rendas, dos escravos aos seus senhores, na cultura do milho (NICOLAISEN, 1997; VAES, 1992).

A direcção e a importância das deslocações do nómada agricultor, são condicionadas essencialmente por dois locais. Os pontos de água onde passará a maior parte da estação seca e o local onde semeará o milho no início da estação das chuvas, ao qual regressará para o recolher durante o mês de Outubro.

Os "semi-nómadas", num terceiro "patamar", distinguem-se dos anteriores, pelo facto das suas deslocações raramente serem superiores a 30 quilómetros e, de se realizarem geralmente em redor de um ponto de água permanente, na proximidade do qual se encontram igualmente as culturas. As deslocações são realizadas apenas por uma parte do grupo, normalmente os mais jovens, que se deslocam com os animais.

Surge finalmente o último "patamar" de evolução, os "nómadas sedentarizados", fixando-se num determinado ponto seja por plena vontade, seja por força das circunstâncias. A idade, a doença, a pobreza, a seca, as epidemias que atacam os animais, constituem factores que podem transformar, súbita ou lentamente, um itinerante num sedentário. (VAES, 1992: 511).

O resultado da evolução em "patamares" não implica que uma hierarquia substitua a anterior. Bem pelo contrário, todas elas coexistem nos dias de hoje, sendo contudo o "patamar" dos "nómadas sedentarizados", a hierarquia mais representativa da actualidade.

Em cada uma das hierarquias de evolução referidas, o indivíduo é obrigado a adaptar-se a um novo meio ambiente, a um novo modo de vida, a novos costumes locais, por vezes a um novo dialecto local. Zakara refere a este propósito, que "a partir do momento em que o nómada se sedentarize, a operação termina com uma verdadeira mutação do indivíduo." (cit. VAES, 1992: 511)

Pensamos contudo a este propósito, não se tratar de uma "verdadeira mutação do indivíduo", mas tão somente a aquisição de um novo estatuto, o de emigrante. Aliás, a própria designação a que Zakara se refere, "nómada sedentarizado", implica um continuar a assumir uma identidade cultural nómada.

Brahim Litny, tuaregue do Mali, a viver actualmente em Paris, escreve: "O deserto é a minha identidade, o meu lar. Quando regresso ao deserto, sinto que reencontro o meu lar. Volto a encontrar a minha própria dimensão, o sentido das coisas, sinto-me no meu elemento natural. Em contrapartida, quando me encontro em Paris, sou constantemente obrigado a adaptar as minhas necessidades, sou obrigado a conformar-me com comportamentos, valores e discursos pouco habituais para mim" (LITNY, 1994: 147). Este é o verdadeiro sentimento do povo tuaregue. Paris poderia ser substituída por Bamako ou qualquer outra cidade do Sael, mas é um facto que nem o Mali, nem o Níger, nem a Argélia, nem qualquer outro país que partilha o deserto do Sara, é a pátria de um tuaregue. A sua pátria é o deserto, da mesma forma que a sua língua, própria, é o tamacheque. A este propósito convirá referir que, os tuaregues são um dos raros povos africanos a possuir um albabeto também próprio, o tifinar.

Torna-se claro concluir, perante um conceito espacial tão definido, uma identidade cultural tão característica (NICOLAISEN, 1997: vol.1, 394) e, uma organização político-social tão complexa (NICOLAISEN, 1997: vol.2, 501), que caracterizam o povo tuaregue, estarmos perante uma "pátria tuaregue" imaginária, que existe apenas no espírito dos tuaregues, mas na qual acreditam fortemente, e através da qual são estabelecidos todos os laços de união.

Thiolay vai mais longe afirmando que "os tuaregues não constituem nem uma raça, nem uma etnia mas um povo, que se reconhece na sua cultura sempre viva" (THIOLAY, 1995: 122). Embora não concordemos com a afirmação na sua plenitude, teremos de sublinhar o facto de constituirem um povo. À ideia de povo terá forçosamente de estar ligado o conceito de organização em Estado. Segundo A. Verdross, só é "povo" a comunidade que consiga "governar-se plenamente a si mesma, ou seja um povo organizado em Estado, ainda que surjam obstáculos a essa organização", nomeadamente o "domínio por uma potência estrangeira" (VERDROSS, 1976: 107).

Mediante todos os factos que foram sendo expostos ao longo do presente capítulo, estamos claramente perante os três domínios básicos, que segundo Jackson (1991: 6), caracterizam todo e qualquer fenómeno migratório: o espacial, o temporal e o social.

Assim, parece não restarem dúvidas que todos os tuaregues que actualmente habitam as cidades e aldeias dos países do norte de África, do Sael ou inclusivamente da Europa, são característicamente emigrantes, representando uma verdadeira diáspora, a dispersão do seu próprio povo. Tal facto vai aliás ao encontro daquilo que Pierre George (1984) nos apresenta como traços comuns de uma diáspora, a existência de uma identidade etnocultural própria, baseada em modos de vida, crenças e língua… e uma pátria comum (cit. BRUNEAU, 1994: 6).

Todos os factos que temos vindo a referir representam a consciência de identidade do povo tuaregue. Apesar de dispersos, a maior parte sedentarizados, pelos diversos países da região do Sara, tal não implica que se tenha operado uma mutação do indivíduo. Para que tal tivesse acontecido, essa consciência colectiva teria de ser a primeira a desaparecer. Segundo Bruneau, "os membros de uma diáspora podem estar perfeitamente integrados e aculturados nos países de acolhimento, mas não podem estar assimilados, senão teriam perdido toda a sua consciência identitária, e deixariam de constituir uma diáspora" (BRUNEAU, 1994: 8). No presente caso tuaregue tal não se verificou. A consciência identitária continua a existir. Os valores e a cultura tuaregue continuam a ser transmitidos de geração em geração, parecendo estarmos longe da quebra dessa cadeia contínua de identidade.

É-nos extremamente difícil no âmbito do presente trabalho, alongarmo-nos sobre a questão da autodeterminação do povo tuaregue e respectiva reivindicação dos territórios na região do Sara. No entanto, tudo parece indicar, que esta diáspora tuaregue, fará parte daquilo a que Bruneau se refere como sendo uma diáspora organizada à volta de um factor político (BRUNEAU, 1994: 16), a dispersão tuaregue devido à ocupação do seu território de origem por outras potências estrangeiras.

Tal facto é pois gerador dos conhecidos conflitos em toda a região do Sara, provocando estes uma enorme dificuldade na obtenção de números exactos sobre a população tuaregue.



Os números actuais são disso reveladores, variando entre os 1,6 / 1,7 milhões (LEE; LEVINSON) e, os 3 milhões proclamados pela associação tuaregue Temoust, sediada em França. Da análise do quadro, poderemos contudo concluir que a partir de 1996, os números em nada são comparáveis com os dos anos transactos. Significaria tal facto um aumento da taxa de natalidade a partir de 1996? Estamos em crer que não. Pelo contrário, devido aos inúmeros factores adversos já referidos (climatéricos, políticos e económicos entre outros), a existir alteração nessa taxa, ela teria forçosamente diminuído.

Tudo parece pois indicar, que as dificuldades de ordem técnica na contagem da população tuaregue, foram ultrapassadas, fruto dos movimentos migratórios, do imaginário "estado-nação sariano" para os países da região do Sara. A emigração para as cidades e aldeias da Argélia, da Líbia, do Mali ou do Níger, a par com a fundação por parte dos governos destes países, de autênticas cidades no meio do deserto, denominados "campos de refugiados" (simples acampamentos nómadas que possibilitam todo o controlo por parte das autoridades), dizíamos, possibilitou uma contagem mais precisa da população tuaregue.


4. Documentário Adalil, les filles des sables

Anya, é uma rapariga tuaregue, proveniente da região do Hoggar (Argélia) que decide emigrar para Bamako, capital do Mali. A acção do documentário decorre em grande parte aquando de uma vista de Anya ao acampamento onde se encontra a sua mãe. A conversa entre ambas, fornece um vasto leque de pistas, cujo trabalho de investigação seria por certo apaixonante, inserido num contexto migratório. Em particular, a tensão constante entre sociedade de origem e sociedade de acolhimento, as relações de emigrante com a respectiva família, os factores de atracção e de repulsão, sempre numa dupla perspectivação, a do que parte e a do que fica.



No Hoggar:

Mãe - "Não quero que as minhas filhas vão para a cidade e fiquem lá tão longe. As hipóteses de tornar a vê-las são remotas e, eu que sou mãe delas sinto uma grande mágoa.
Só podem corromper-se e desgraçar-se e eu gostava muito de voltar a ver a Anya.
Se a rapariga me abandona e vai para outra terra irá ter lá os seus filhos, irá tornar-se inútil para mim e para ela própria. A Anya foi para Bamako e eu tenho medo que ela se perca na cidade."




Em Bamako:

Anya - "A minha mãe nunca visitou nenhuma cidade. Julga que é um lugar repleto de perigos e infâmia. Convenceu-se que no dia em que puser os pés na cidade, irá penetrar num mundo que ela não compreende. Nem sequer tem o menor desejo de que eu lhe diga como é a cidade.
Mas a vida que eu e o Ahmed levamos aqui na cidade é boa. No entanto é com prazer antecipado que esperamos a ocasião de tornar a ver as tendas da nossa família.
Na cidade disponho de muitas coisas. Há sempre água que chegue e alimentos disponíveis em qualquer altura. Por outro lado, no deserto necessito de muito pouca coisa… mas a falta de água é constante. Os homens são obrigados a ir buscá-la muito longe. Isso faz com que a vida seja difícil."




No Hoggar:

Mãe - "Eu estava apavorada no que respeita à Anya. Não sou capaz de explicar a ninguém o medo terrível que sentia. Desde que os meus filhos se foram embora para a cidade, deixando-me aqui, ando cheia de medo de que eles morram lá sem eu ter voltado a vê-los. Uma mulher cega que permanece no mesmo sítio, vê muita coisa que uma rapariga irrequieta não distingue. Desde que a Anya foi para a cidade eu vivo cheia de medo.
Mas quando ela me visita, a minha alegria é maior do que o medo que eu senti depois de ela ter partido."


Anya - "A vossa vida de nómada é muito contingente. Quando o meu pai morreu deixou-nos apenas gado. Mas os animais desapareceram e, é como se ele não tivesse possuído nada. Se tivesse vivido na cidade talvez possuíssemos casas e carros, e essa riqueza tinha subsistido."
Mãe - "Julgas que na cidade não se dão calamidades? Mas há muitos anos a chuva levou tudo de enxurrada. Casas resistentes e jovens. As cidades também são vítimas de catástrofes naturais, contudo a terra aqui não devora as pessoas."

Anya - "Mas aqui há hienas e chacais que nos arrastam para longe."

Mãe - "Já não se encontram animais desses por estas bandas. Migraram para as redondezas da cidade… e, nas cidades as pessoas comem-se umas às outras."

(…)

Anya - "Nas cidades não há anos maus, quer haja seca quer não, as pessoas sobrevivem. Geralmente mal se apercebem dela.
Quando se tem muitos camelos fêmeas, pode dar-se o caso das manadas se extraviarem e de não se encontrar uma única fêmea. De repente uma pessoa fica sem nada."


Mãe - "Perder os animais é uma calamidade que pode suceder a toda a gente. Nessas alturas vai-se ter com os amigos e os parentes e pedem-se algumas cabeças de gado emprestadas."

Anya - "Exactamente… pede-se emprestado um animal que dê leite… Se os vizinhos tiverem um desses animais é como se fosse a própria pessoa a possuí-lo... Esta ajuda mútua é ancestral,… está-nos no sangue. Na cidade não existe nada disto…"

Mãe - "Eu vivo melhor que tu. Sou mais feliz, tenho leite, carne, água, faço a matança dos cabritos, faço sacos de água…"

Anya - "Mas esta vida no deserto deixa-te mais esgotada. Mesmo para fazeres um saco de água tens de esfolar a pele, curti-la, cozê-la, lavá-la… Um trabalho muito fatigante só para se poder beber. Na cidade não tenho nenhuma dificuldade em arranjar água. Tenho uma torneira em casa e posso ter água sempre que quiser."

Mãe - "Com a tua torneira na cidade não é apenas a água que corre, mas é também o teu dinheiro que desaparece.
Ao passo que eu só utilizo o meu machado, não preciso de dinheiro para satisfazer as minhas necessidades quotidianas.
A tua torneira da água é dinheiro, a essência da tua vida é o dinheiro. No teu caso nada se faz sem dinheiro. Na cidade, se um dia te levantas de manhã sem dinheiro, ficas com medo de perder a vida antes do anoitecer."


Anya - "Na cidade, consigo arranjar tudo num dia."

Mãe - "E o que é que obténs? Só consegues ter mais trabalho.
Todos os dias de manhã e de noite sigo os meus animais sem grande esforço. Ao fim do dia vou mungi-los sem nenhuma dificuldade."


Anya - "O trabalho de uma mulher que guarda gado é muito duro.
Sou mais feliz do que tu!"


Mãe - "Não. Eu sou capaz de arranjar tudo sózinha, não preciso de ninguém…"



Conforme já o haviamos referido, não nos iremos alongar em comentários que os diálogos expostos nos suscitam.

Gostaríamos apenas de terminar com a transcrição de algumas palavras da narradora, ela própria no papel de uma tuaregue, após outros cenários e diálogos cujos temas passam pela seca, pela pobreza, pela miséria e pela decisão de partir.

"(…) As cidades fascinam-vos ó homens, como uma mulher bela e feiticeira. (…) O teu coração habita num lugar remoto, e a distância dói como o primeiro parto. (…) Mesmo que as areias, o vento e as estrelas dançassem, não era capaz de voltar a rir alegremente, a menos que tu, meu filho, regresses."


5. Uma sociedade nómada em constante migração

Longe de pretendermos teorizar a questão tuaregue num contexto migratório, não queremos deixar de referir que uma análise detalhada de âmbito pluridisciplinar, conforme aliás já o haviamos referido (RAMOS, 1995: 149; RAMOS, 1996: 254), traria à luz por certo, um sem número de questões e eventuais conclusões.

Fica-nos no entanto a ideia de uma sociedade organizada em torno das migrações. Desde a sua expulsão do norte de África, até aos nossos dias, a mobilidade tem acompanhado a vida deste povo.

A estabilidade política da região facilitará porventura um estudo mais detalhado de toda esta problemática. Estamos no entanto em crer, que a dispersão deste povo, unido em redor de uma forte identidade etnocultural, fará por certo um dia história.

O presente trabalho, se outra finalidade não teve, levantou a questão do tuaregue como "ser estrangeiro" num território que era seu por natureza. Vítimas de perseguições pelos diversos Estados, apoiados por outros com intenções políticas duvidosas, o povo tuaregue, para além de todos os problemas levantados, debate-se ainda com a questão da exclusão social (como tantos outros emigrantes em tantas outras partes do mundo), nos locais onde se encontra sedentarizado. Outrora Senhores do Sara, são hoje considerados no Mali e no Níger como fazendo parte de uma minoria branca, na Argélia e na Líbia consideram-nos uma minoria negra.

Se esta sociedade nómada não constitui uma diáspora, constituirá por certo uma sociedade em constante migração.


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(texto escrito em Dez. 1998)

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